ESTADO DEVERÁ INDENIZAR FAMILIARES DE EX-MULHER MORTA POR POLICIAL MILITAR
Ao julgar o RE 841.526/RS, em 30 de março de 2016, o Supremo Tribunal Federal decidiu, em sede de repercussão geral, que “o Estado responde de forma objetiva pelas suas omissões, desde que presente a obrigação legal específica de agir para impedir a ocorrência do resultado danoso, em sendo possível essa atuação”.
O fundamento serviu como uma “luva” para a 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul reformar sentença que eximia o Estado pela responsabilidade civil da morte da ex-mulher de um policial militar e seu namorado. Ambos foram assassinados pelo policial, inconformado com a separação, que cometeu suicídio logo em seguida na comarca de Santo Ângelo. O casal estava divorciado havia três anos, mas as ameaças de morte haviam sido feitas nos últimos três meses antes do trágico fato.
Ação reparatória
Os dois irmãos da mulher assassinada, autores da ação indenizatória, queriam responsabilizar os poderes Executivo e Judiciário do Rio Grande do Sul pelo trágico desfecho. O primeiro, pela omissão do Comando da Brigada Militar, que, ignorando as súplicas da vítima, se recusou a tirar a arma do “brigadiano” de forma administrativa. O segundo, por erro judiciário, já que o juiz Carlos Adriano da Silva, da 2ª Vara Criminal da comarca, também negou o mesmo pedido quando deferiu as medidas protetivas no âmbito da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), que coíbe a violência doméstica e familiar contra a mulher.
“Quanto à suspensão da posse ou restrição do porte de armas, por ora indefiro, tendo em conta tratar-se de instrumento de trabalho do suposto agressor, que exerce a função de policial militar da ativa. Outrossim, não há evidência no relato da ocorrência policial de que as supostas ameaças tenham sido levado a cabo mediante o emprego de arma”, justificou o julgador no despacho, datado de 5 de junho de 2013 — um dia antes do duplo assassinato.
Sentença improcedente
A juíza Taíse Velasquez Lopes, da 2ª Vara Cível daquela comarca, julgou improcedente o pedido de reparação moral no valor de R$ 100 mil para cada um dos autores. Para tanto, valeu-se dos fundamentos expressos no parecer do promotor de justiça Júlio César Maggio Stürmer, do Ministério Público estadual.
Para a julgadora, o fato que desencadeou o duplo homicídio foi o ciúme doentio do policial, cuja conduta não foi praticada em razão de sua função. Ou seja, não se pode confundir o interesse do aparato estatal em prevenir e reprimir ilícitos criminais com o interesse particular do cidadão que, enciumado, mata a ex-mulher e seu namorado, ainda que portando arma da corporação.
“Em outras palavras, é certo que o fato causador do alegado dano (o homicídio) não tem qualquer relação de causa e efeito com a atividade do agente. Assim que, nem mesmo sob o aspecto do dever estatal de indenizar danos que seus agentes causem comissivamente a terceiros, haveria forma de prosperar a pretensão autoral”, escreveu na sentença.
Conforme Taíse, a Administração Pública não tinha nenhum elemento concreto para restringir direitos do servidor. “Afinal, não se tem notícia de que tenha sido formalizada, na via administrativa, qualquer reclamação contra o servidor, em decorrência de sua atuação funcional ou, ainda, em razão do cargo que ocupava. Além disso, na data do fato, ele não estava de serviço e, mais do que isso, gozava de dispensa por motivo de elogio funcional (situação informada em contestação e não impugnada especificamente nos autos)”, concluiu. Da decisão, apelaram os autores ao TJ-RS.
Virada no Tribunal de Justiça
O relator da apelação, desembargador Eduardo Kraemer, esclareceu, inicialmente, que a responsabilidade civil do estado é sempre objetiva, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal ao julgar o RE 841.526/RS. Neste julgamento, o ministro-relator Luiz Fux assentou que o estado responde, sim, pela sua omissão — desde que obrigado legalmente a agir para impedir um fato danoso decorrente desta omissão, se isso for possível.
Após citar o teor do depoimento das testemunhas e os documentos anexados aos autos, o relator entendeu que ficou caracterizada a omissão estatal, dada a ausência de medidas que poderiam ser tomadas pelos seus agentes para evitar uma “tragédia anunciada”. E pior, causada com uma arma da corporação policial.
“E nesse ponto, no caso concreto, reside a omissão estatal, porquanto o Comando da Brigada Militar tinha ciência sobre a situação de constantes ameaças e perseguições de Jeferson contra Michele e, tendo ciência, deveria ter agido preventivamente no sentido de retirar a arma do servidor. Jeferson ganhou dispensa de três dias e foi nessa ocasião em que cometeu o crime. Ele não precisava estar armado”, escreveu no voto o desembargador-relator.
Conforme Kraemer, ficou claro que o policial já vinha anunciando que iria matar a ex-esposa. E, mesmo diante da gravidade das ameaças, o Comando da Brigada Militar não encaminhou o brigadiano a um psicólogo, para avaliação da sua saúde mental.
“Não basta dizer que o fato ocorreu na vida particular do servidor, não tendo nenhuma relação com a corporação. Isto porque está-se a tratar de servidor que utiliza arma de fogo, da corporação, para o ofício. E se ele ameaça de morte outra pessoa, fora do trabalho, na vida pessoal, e a persegue em todos os lugares, isso indica que talvez ele não esteja em condições de portar uma arma de fogo. E, no caso, esses sinais estavam claros”, justificou no voto.
Perda de uma chance
Nesse contexto, o desembargador Eduardo Kramer aplicou ao caso a teoria da perda de uma chance. Afinal, embora sem certeza, se a arma tivesse sido retirada do policial, havia uma chance da vítima se salvar. “Assim, caracterizado está o dano moral, tendo em vista a dor vivenciada pelos autores, que acompanharam a luta da irmã para tentar seguir sua vida, mas acabou sendo morta pelo ex-marido, que não aceitava a separação”, complementou. Ele arbitrou a reparação moral em R$ 12 mil para cada um dos autores.
Em relação ao suposto “erro judiciário”, o desembargador-relator frisou que esta hipótese não ficou caracterizada, pois a decisão judicial que deferiu as medidas protetivas à vitima foi devidamente fundamentada. Ou seja, não caracteriza as hipóteses de desvio, dolo, fraude ou má-fé.
Fonte: Conjur (10/11/2020)