“DIVÓRCIO SURPRESA” NA REFORMA DO CÓDIGO CIVIL
Dra. Regina Beatriz Tavares da Silva, Presidente da ADFAS, concede entrevista sobre “divórcio surpresa”, originalmente publicada na Gazeta do Povo
O último relatório para o anteprojeto do novo Código Civil, que em breve tramitará no Senado, inclui dispositivos que poderiam redefinir a instituição do casamento na legislação, indo muito além até mesmo das polêmicas decisões recentes do Supremo Tribunal Federal (STF) nesse âmbito.
Nesta semana, em entrevista ao site UOL, o advogado Flavio Tartuce, relator do anteprojeto, deixou explícita a intenção da proposta de promover maior “fluidez” nas relações, facilitando os processos de casamento e divórcio. “As relações hoje são mais fluidas. Se facilitamos o divórcio, temos que facilitar o casamento, com redução de tempo e de custos. Um dos objetivos da reforma do Código Civil é destravar a vida das pessoas”, afirmou.
Um dos dispositivos que mais preocupam alguns juristas é o artigo 1.582-A, que introduz a possibilidade de divórcio unilateral pelo cartório sem controle prévio do Poder Judiciário. Essa inovação permitiria a uma das partes dissolver o casamento sem o consentimento e até mesmo sem a presença da outra – o que tornaria a dissolução do casamento mais fácil até mesmo do que, por exemplo, a ruptura de certos contratos de locação de imóvel comercial.
Regina Beatriz Tavares da Silva, presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) e doutora em Direito Civil pela USP, considera compreensível a busca por facilitar a burocracia em processos de casamento e divórcio, mas ressalva que “é preciso considerar as consequências de facilitações exageradas”. Ela vê como especialmente perigosa a possibilidade do requerimento unilateral no cartório, presente no artigo 1.582-A da proposta. Para ela, o dispositivo poderia ser chamado de “divórcio surpresa”.
“Esta proposta, se não for modificada, causará inúmeros prejuízos ao cônjuge notificado, o qual, entre outros exemplos, poderá ser excluído imediatamente de seguro ou plano de saúde existente junto à empregadora do requerente do divórcio, bastando a apresentação da certidão de casamento com averbação do divórcio, bem como ser subitamente expulso do domicílio conjugal, se o imóvel pertencer exclusivamente ao notificante”, afirma. Em alguns casos, ressalta ela, o cônjuge poderia não ter tempo nem sequer para procurar assistência jurídica e tomar as providências judiciais cabíveis para manter o plano de saúde e permanecer no imóvel.
Para a jurista, é uma falácia o pretexto de que o dispositivo seria uma forma de favorecer mulheres cujos maridos não desejam o divórcio. “Quando se fala em proteção da mulher, que não consegue se divorciar como justificativa dessa proposta, isto, com todo respeito, é uma falácia, porque a mulher que sofre violência doméstica precisa das medidas protetivas da Lei Maria da Penha e não de divórcio por notificação em cartório”, diz. Regina avalia que o divórcio por pedido unilateral no sistema em vigor no Código Civil já é “suficientemente facilitado”.
Confusão de conceitos no anteprojeto do Código Civil poderia facilitar reconhecimento legal do poliamor
Quanto à possibilidade de uniões poliamorosas, levantada por esta reportagem da Gazeta do Povo, Regina observa que o anteprojeto faz confusão com os conceitos de “sociedade conjugal”, “sociedade convivencial” e “união estável”, além de não definir bem o que é “família não conjugal”. Essa falta de clareza poderia resultar em interpretações equivocadas.
Por um lado, em dado momento, as leis propostas definem casamento e união estável como formações familiares compostas por apenas duas pessoas, ressaltando a importância da monogamia como a base dessas relações; na maior parte do texto, sociedade conjugal é sinônimo de casamento, e sociedade convivencial é sinônimo de união estável.
Porém, destaca Regina, o artigo 1.702 do anteprojeto cita a sociedade conjugal, a sociedade convivencial e a união estável como três entidades distintas. Por isso, afirma ela, a sociedade convivencial poderia ser equivocadamente interpretada “como abrangente de outros arranjos que não são familiares”.
Para a especialista, também é preciso tornar mais clara a diferença entre dois tipos de família mencionados nas leis: as famílias formadas por casais (conjugais) e as formadas por pessoas que não são casais, como irmãos ou amigos que decidem viver juntos (não conjugais). Essa distinção é importante para evitar, por exemplo, que as famílias não conjugais possam ser vistas como relações poliamorosas.
“É necessário o aperfeiçoamento de todos os dispositivos mencionados, sob pena de ser aberta a porta do direito de família para relações que não são reconhecidas como entidades familiares pela Constituição Federal e pelas teses de repercussão geral do Supremo Tribunal Federal”, conclui.