DISSOLUÇÃO CONJUGAL, SUCESSÃO E REPRODUÇÃO ASSISTIDA: REALIDADE E PANORAMAS SEGUROS
Este é o segundo artigo que trata dos temas do 6º Congresso Internacional da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), realizado na Universidade de Coimbra, Portugal, nos dias 2 e 3 de dezembro.
A comparação entre a legislação vigente e projetada no Brasil e as normas legais em Portugal, com os olhos na realidade e em vista de panoramas seguros, propiciou debates e reflexões relevantes para as sociedades brasileira e portuguesa.
A dissolução do casamento e a proteção ao cônjuge foram examinadas quando há violação aos deveres conjugais, com a aplicação dos princípios da responsabilidade civil, o que é aceito em ambos os países, embora se exija danos especialmente graves que mereçam a tutela do direito. O que seria dano efetivamente grave? A violência doméstica não seria sempre grave? A infidelidade seria conduta menos grave?
A prestação compensatória e a pensão alimentícia são conceitos diferentes. Em Portugal, a pensão alimentícia, desde 2008, não visa à manutenção do status socioeconômico do ex-cônjuge. Por seu turno, a prestação compensatória em terras lusas pode ser fixada em certos casos, sobretudo em casamento em separação de bens, nos quais um dos cônjuges abdicou de forma desproporcional da sua carreira profissional em benefício do outro cônjuge e/ou dos filhos. No Brasil a pensão alimentícia entre ex-cônjuges, há mais de uma década, é transitória na maior parte dos casos, devendo durar até que o necessitado tenha meios próprios de subsistência. Mas no Brasil o padrão de vida deve ser considerado. Ao anteprojeto de reforma falta a fixação de requisitos, porque não se inspirou na jurisprudência brasileira, que criou, com base na doutrina, esse instituto, em boa imitação do sistema francês, que legalizou naquele país, há muitos e muitos anos atrás, a prestação compensatória.
Desafios das famílias empresárias em pequenas e médias empresas, mas também em 40% das grandes, cotadas em bolsa, em Portugal têm estrutura acionista controlada por uma família. Ora, a gestão e a sucessão nestas famílias exigem elevado cuidado e previsão jurídica, sendo chegado o tempo de o Código Civil português prever algumas regras básicas sobre este tema, que tem estado relegado para acordos parassociais e negócios sucessórios. No Brasil, espera-se que a reforma melhor legisle sobre a matéria, para que os membros de famílias empresárias não dependam em qualquer caso e, portanto, sempre de advogados para assegurar seus direitos.
A separação de pessoas e bens e a separação de fato como formas de dissolução da sociedade conjugal também foi tema relevante no Congresso da ADFAS. A separação de pessoas e bens continua prevista no Código Civil português, em homenagem ao princípio da liberdade religiosa. Bem como pela previsão otimista de que possa haver reconciliação entre os cônjuges. Por seu turno, a separação de fato não termina imediatamente o casamento, mas pode ser um fundamento (se durar mais de um ano) de divórcio contra a vontade do outro cônjuge. Por seu turno, tem efeitos patrimoniais relevantes, nos casamentos em regime de comunhão. Já no Brasil, absurdamente, data venia, o STF em tese de repercussão geral extirpou a separação judicial e extrajudicial, violando o exercício desse direito de somente dissolver a sociedade conjugal a quem tem crença que não admite o divórcio. E a reforma ficou com as mãos amarradas, porque, se reintroduzir a separação de pessoas e bens no Brasil, a norma ficaria submetida a uma declaração de inconstitucionalidade pelo STF.
A legítima e seu papel na família contemporânea – parece cada vez mais consensual que a legítima deva ser reduzida, mas não eliminada. Advoga-se uma reforma, e não uma revolução. O afastamento do cônjuge da categoria de herdeiro necessário não é defendido em Portugal pela doutrina dominante, mas no Brasil há uma tendência, reconhecida no anteprojeto de reforma, nesse sentido. Interessante notar que em Portugal uma lei recente autorizou que os nubentes renunciem ao direito à herança, em pacto antenupcial, ou seja, ao que parece, contrariamente à doutrina majoritária. Seria realmente caso de modificar a norma brasileira, simplesmente, retirando o cônjuge da relação de herdeiros necessários? Ou fazer uma gradação conforme a duração do casamento?
A Reprodução ou Procriação Medicamente Assistida postmortem está devidamente regulamentada em Portugal desde 2021, prevendo-se um prazo máximo de três anos para que se possa concretizar e regulando-se o fenômeno sucessório, assegurando que a herança fica jacente durante esse tempo. No Brasil não há regulamentação legal, mas se permite e é feita em razão de normas de mera deontologia médica, sem eficácia erga omnes, advinda do Conselho Federal de Medicina (CFM). Aí vêm as ginásticas dos Tribunais, para concluir sobre forças do termo desse tipo de reprodução medicamente assistida após a morte, prazos etc. No Brasil o anteprojeto de reforma não vai bem ao escolher a forma simples de um termo particular, sem a indispensável intervenção do tabelião de notas na verificação da livre e consciente manifestação da vontade dos signatários, ou seja, dos cônjuges ou conviventes.
O direito ao conhecimento da ascendência vs. o anonimato do doador (na RA ou PMA heteróloga) é a tese mais moderna por todo o mundo, da Austrália à França e sendo imposta por decisão do Tribunal Constitucional português de 2018. No Brasil ainda vigora o anonimato do doador do gameta, pela norma deontológica do CFM, indevidamente seguida pelo CNJ. Danos ao ser humano assim procriado, desde um tratamento de saúde, em é necessário conhecer a ascendência, suas doenças, como diabetes ou cardiopatias, até os riscos de relações incestuosas involuntárias. O anteprojeto propõe a judicialização da quebra do anonimato, a ser realizada somente com autorização judicial. Afinal, a intenção de quem fez essa proposta seria efetivamente seguir o suposto mote da reforma: a desjudicialização?
Pessoa com deficiência mental e intelectual e o direito ao desenvolvimento da personalidade – em Portugal o Código Civil foi adaptado à Convenção de Nova Iorque em 2018, prevendo-se ainda alguns casos de restrição, designadamente na liberdade de casar. Advogou-se uma análise casuística dos impedimentos ao matrimônio. Seriam limitações que desprotegem ou protegem os mais vulneráveis? É uma grande questão! No Brasil o Código Civil exagerou na falta de dosagem, por causa das mudanças provocadas pelo Estatuto da Pessoa com deficiência, possibilitando o casamento em qualquer hipótese ou grau de deficiência, sem proteção no regime de bens ao vulnerável. E o anteprojeto de reforma segue essa linha.
Diretivas Antecipadas da Vontade e Procuração de Cuidados de Saúde, em que a pessoa que tem discernimento estabelece o que deverá ser feito com sua pessoa e seus bens, em caso de incapacidade, estão regulados em Portugal, desde 2012, e constituem um instrumento muito importante para a autodeterminação nos cuidados de saúde. No Brasil são praticados esses atos, inclusive em escritura pública, e o anteprojeto erra ao pretender possibilitá-los por mero formulário no Cartório de Registro Civil (RCPN). Aliás, se vê uma tendência nada recomendável nesse anteprojeto de atribuir muitas outras funções ao RCPN, no sentido de deixar de ser uma serventia que registra e passar a ser um cartório que formula a vontade das partes, em substituição ao tabelionato de notas.
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Fonte: Estadão