COMO REALIZAR A CONVIVÊNCIA FAMILIAR EM TEMPOS DE COVID-19

Por Alexandra Ullmann* e Andreia Calçada**

A pandemia da Covid-19 pegou de surpresa um mundo globalizado, onde as noticias são divulgadas em milésimos de segundo e a disseminação da doença modificou a forma de agir e pensar de toda a humanidade.

A imprevisibilidade da situação em que os países foram envolvidos trouxe à Justiça questões importantes e que dependem de análises rápidas e firmes, principalmente àquelas que envolvem famílias e crianças. A manutenção da convivência parental se transformou em um dilema que desencadeou discussões entre doutrinadores e operadores do Direito.

As crianças filhas de pais separados devem manter a convivência parental com ambos os genitores? Há o risco de que, com o deslocamento, essas crianças se contaminem com o vírus ou sejam vetores do mesmo? Deve-se suspender a convivência sem a análise prévia de cada caso, mantendo-a apenas de forma virtual? Quais as consequências da convivência virtual para os menores? Qual o reflexo da suspensão de convivência em crianças vítimas de perversos atos de alienação parental?

Não há dúvidas de que a suspensão da convivência parental imotivada, ainda que em tempos de pandemia, configura-se prática de ato de alienação parental, não podendo, assim, ser chancelada pelo Judiciário.

A negativa ao exercício da convivência parental presencial é um ato extremo e o magistrado deve optar por este caminho somente em casos em que for comprovada a existência de risco para a criança/adolescente ou para a sociedade.

No entanto, no dia 25 de março, o Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) emitiu documento com “recomendações para a proteção integral a crianças e adolescentes durante a pandemia da Covid-19”, sendo certo que, entre elas, apresenta algumas orientações e sugestões no que tange às chamadas “visitas” aos filhos de casais separados ou divorciados, nos seguintes termos [1]:

“10. Recomenda-se que crianças e adolescentes filhos de casais com guarda compartilhada ou unilateral não tenham sua saúde e a saúde da coletividade submetidas à risco em decorrência do cumprimento de visitas ou período de convivência — previstos no acordo estabelecido entre seus pais ou definido judicialmente”.

Importante salientar que não há na orientação acima mencionada nada que determine ou sugira a suspensão da convivência presencial, mas, sim, a recomendação expressa de que não se coloque em risco as crianças ou a coletividade.

A suspensão da convivência parental, que vem sendo adotada indiscriminadamente com base na recomendação acima mencionada, traz em si uma interpretação errônea do texto apresentado pelo órgão.

Em uma breve análise da orientação, verifica-se que esta é uma “recomendação” para que “se” e “quando” houver risco comprovado de contaminação da criança com o vírus, por negligência de um dos genitores, caberá ao julgador a decisão que determinará a suspensão e/ou modificação da convivência pré-estabelecida entre pais e filhos.

Uma mera “recomendação” não pode ser transformada em regra de afastamento parental e pilar de sustentação de atos de alienação parental, sob pena de correr na contramão dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes.

Não devem os juízos de família, sem analisar casuisticamente os processos delicados que estão sob os seus cuidados, utilizar a orientação acima transcrita como regra, sem considerar o caso concreto.

A convivência com ambos os genitores deve ser resguardada como forma de garantir o melhor interesse das crianças e adolescentes, cabendo aos genitores zelar pela saúde dos filhos quando em sua companhia. Ou seja, a não ser que haja a comprovação de um risco que a convivência parental represente para a criança ou para a sociedade, deve a mesma ser mantida, considerando ser um direito constitucional de pais e filhos.

É excepcional a suspensão da convivência física e a determinação de sua realização por meios eletrônicos e virtuais, o que não é nem pode ser a regra geral.

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em algumas decisões proferidas, vem resguardando o melhor interesse das crianças quando determinam a manutenção da convivência dos mesmos com ambos os genitores:

“Assim, tendo em conta a existência de fortes vínculos entre pai e filho e a importância do convívio entre ambos para a manutenção dos laços afetivos, o que contribui para o desenvolvimento saudável da criança e para sua estabilidade emocional, e, de outro lado, a ausência de dados concretos que contraindiquem a visita do pai ao filho, como acima mencionado, há que ser indeferida a concessão da tutela provisória de urgência recursal para a suspensão da visitação (Agravo de instrumento n. 0020842-98.2020.8.19.0000 – 24a. Câmara Cível- DES. ALCIDES DA FONSECA NETO).

AGRAVO DE INSTRUMENTO. VISITAÇÃO DE MENOR. Pedido de modificação de acordo de visitação estabelecido no divórcio consensual. Suposta relação conflituosa estabelecida entre os genitores. Alegado tumulto à rotina da genitora e dificuldade de cumprimento da quarentena estabelecida em razão da pandemia do Coronavírus. Criança com dois anos de idade. Ausência de prova da situação fática atual e de indícios de conduta incauta do genitor, tendente a potencializar o perigo de contágio. Deslocamento realizado para fins de contato do pai com a menor compreendido no direito à convivência familiar (artigo 1.589, do Código Civil). Afastamento completo de circulação de pessoas destinado às pessoas doentes ou suspeitas de contaminação, nos termos do artigo 2º, da Lei nº 13.979/20. Manutenção da rotina da criança e dos laços de afeto com o genitor, em prol do bom desenvolvimento emocional do infante. Providência que preserva, simultaneamente, o melhor interesse da menor e a relação entre pai e filho. Recurso desprovido.(agravo de instrumento n. 0021037-83.2020.8.19.0000- 18a. Câmara Cível – Des. Carlos Eduardo da Fonseca Passos)”.

A ausência parental contínua e desarrazoada traz graves consequências emocionais às crianças, não podendo a mesma ser considerada norma padrão em uma situação excepcional como a que ora se vivencia.

A análise casuística das questões envolvidas nos processos de família deve abarcar um exame atento da dinâmica familiar, questionando principalmente a existência de provas ou indícios de atos de alienação parental anteriores ao período de quarentena que ora se enfrenta. O isolamento social tem sido utilizado por genitores, de forma vil, como justificativa para o afastamento do outro da vida do filho comum.

Os vínculos parentais, principalmente com crianças de tenra idade, precisam ser mantidos e alimentados diuturnamente e não podem ser substituídos por minutos de conversa pela tela de um telefone celular ou um computador sob a supervisão daquele que não deseja a manutenção dos elos entre o outro genitor e o filho comum, a não ser, repise-se, em casos extremos.

O assunto é novo e desafiador. A cautela, em atenção ao princípio da proteção integral dos menores, deve permear as decisões judiciais, mas o que temos visto é um sem número de determinações de suspensão de convivência parental, sem maiores análises dos casos concretos e sem a detida análise aos malefícios que podem ser causados às crianças e adolescentes.

As recomendações do Conanda são apenas recomendações e não determinações, tendo sido editadas em um momento que não se conhecia a extensão da pandemia e quais os prazos de sua duração. Não há que se falar em suspensão de convivência quando ambos os genitores podem e devem garantir a segurança do filho comum, independentemente do tipo de guarda que seja exercido. E este direito constitucional deve ser resguardado e garantido pela Justiça.

Sobre os impactos psicológicos em crianças e adolescentes

É imprescindível, agora que o impacto inicial da Covid-19 se diluiu, que tais posicionamentos sejam reavaliados. A restrição à convivência se alongou, estamos entrando no terceiro mês de quarentena e crianças e adolescentes padecem da participação de um de seus pais em seu dia a dia. Certamente as solicitações judiciais de suspensão da convivência em função da doença revelam em sua maioria conflitos familiares anteriormente existentes. As famílias que possuem diálogo normalmente conseguem resolver os conflitos existentes sem recorrer à justiça. Portanto, a obrigatoriedade em analisar caso a caso como forma de decidir de forma justa e com o olhar voltado para o melhor interesse das crianças se faz presente.

No caso de filhos de pais separados envolvidos em litígios, em que o risco de rompimento de vínculos é alto, a convivência frequente assegura o aprofundamento dos laços de afeto tão importantes para a estruturação de personalidades em desenvolvimento. É sabido que essa interação estreita e fortalece os laços afetivos.

Essas crianças e adolescentes viviam seu dia a dia assegurados (muitas vezes por determinações judiciais) pela participação de seus pais em sua vida ajudando a organizar seus horários, colocando limites e cuidando das tarefas diárias como alimentação, estudos e hábitos de sono.

Pesquisas demonstram que filhos de pais separados estão significativamente em maior risco de desenvolver problema de saúde física e mental [2]. Suas necessidades ficam comprometidas mais facilmente, em função da instabilidade pela qual os genitores passam em diversos níveis, durante a separação e o divórcio e também porque as instituições não apoiam os pais na concretização da satisfação das necessidades das crianças.

Kruk (2017) aponta que a parentalidade partilhada, na medida em que mantém o envolvimento de pai e mãe na vida dos filhos, mantém a ordem e a estabilidade [3] necessárias aos filhos durante e após a separação dos pais.

O autor revela outras necessidades infantis como proteção, autonomia (na capacidade de escolha), igualdade, liberdade de opinião, amor respeitoso, responsabilidade, segurança, como a necessidade de estar a salvo, vida social, raízes, entre outras.

A perda do convívio com um genitor decorrente de decisão judicial, mesmo que de forma temporária (como no caso da quarentena), fere o bem-estar das crianças e jovens. Pode se estabelecer como uma forma de desenraizamento [4], fonte de grande mal-estar para os menores principalmente em caso de alienação parental, forma clara de abuso infantil (Bernet et al. 2010in Kruk 2017).

O tempo e a distância são aliados potentes daquele que aliena em busca de revide e rompimento de vínculos entre o outro genitor e o filho. A quarentena pode se transformar no tempo necessário para manipular os filhos afetivamente, gerando sequelas de difícil tratamento, como a insegurança, a ansiedade, e uma diversidade de conflitos emocionais. Enfim, que o olhar atento do Judiciário se desenvolva visando ao enraizamento fortalecido das relações entre pais e filhos e o olhar sobre as necessidades de crianças e jovens.


[1] http://www.crianca.mppr.mp.br/2020/03/246/Covid-19-Conanda-emitiu-orientacoes-gerais-para-a-protecao-de-criancas-e-adolescentes.html
[2] Kelly 2006; Fabricius 2003; Bauserman 2002; Amato 2001
[3] Correia, 2017 pg 44.
[4] Perda de vinculação e referências familiares, perda do pertencimento.


* Advogada e psicóloga, sócia do escritório Ullmann e Advogados Associados. Associada da ADFAS.
** Psicóloga e Perita judicial.

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