CNJ JULGA PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS PARA QUE NÃO SEJAM LAVRADAS ESCRITURAS DE POLIGAMIA
Por Regina Beatriz Tavares da Silva*
O pedido de providências realizado pela Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para que seja vedada a lavratura de escrituras de poligamia por Tabelionatos de Notas teve seu julgamento iniciado nesta última terça-feira (24/4/18).
O relator e corregedor nacional de Justiça, ministro João Otávio de Noronha, proferiu voto pela procedência do pedido de providências, com fundamentos muito relevantes, entre os quais o de que um Tabelião de Notas não pode contrariar a lei, atribuindo direitos a pessoas que são contrários ao que estabelece o ordenamento legal.
Uma escritura de união poliafetiva que atribui a essa relação os efeitos da união estável, equiparada ao casamento, é ilegal, porque a união estável, segundo a Constituição Federal, pode existir somente entre duas pessoas, um homem e uma mulher, sendo que o Supremo Tribunal Federal (STF) quando atribuiu às uniões homoafetivas a natureza de entidade familiar também sempre fez referência a duas pessoas.
As uniões estáveis, que se equiparam ao casamento, são sempre monogâmicas para terem efeitos de direito de família, sejam heterossexuais, sejam homoafetivas.
Apesar dos recentes debates sobre o conceito de família, o que abriu espaço para a aplicação do conceito de união estável a relacionamentos homoafetivos, o mesmo não se aplica a uma relação poligâmica. Nossa sociedade não aceita a poligamia e não existe suporte em nosso ordenamento jurídico para a atribuição de efeitos de direito de família a esse tipo de relação.
Um Tabelião de Notas tem fé pública, qualidade que lhe é atribuída pela lei. Os seus atos notariais têm a confiabilidade de quem participa da escritura que é lavrada e também da sociedade em geral. Portanto, quando o Tabelião de Notas, portador da fé pública, lavra uma escritura, declarando a existência de relação de três, quatro, cinco ou mais pessoas com direitos típicos da união estável, afirma inveridicamente à sociedade que tais relações entraram no mundo do Direito, que se tornaram relações jurídicas familiares e produzirão todos os efeitos ali mencionados.
Efetivamente, o Tabelião de Notas não está autorizado a outorgar direitos que são vedados pela Constituição Federal e pela legislação infraconstitucional a uma relação que não existe como entidade familiar no plano jurídico mediante a lavratura de uma escritura pública eivada de nulidade.
O Tabelião que assim age desrespeita a lei e a fé pública que lhe foi conferida, viola a confiabilidade que nele foi depositada.
Essas escrituras são marcadas pela nulidade, por contrariar a lei, que vincula a duas pessoas, e não a três, quatro ou cinco, a proteção especial dada a uma relação de família, ou seja, os efeitos pessoais e patrimoniais, e os benefícios advindos de entes públicos e particulares.
Entre esses efeitos, essas escrituras declaram que todos os partícipes dessa relação são dependentes entre si, com consequentes benefícios da previdência social, de outros entes públicos, e de empresas privadas, como seguradoras e planos de saúde, clubes etc. Aliás, consta de uma das escrituras que a dependência recíproca entre os envolvidos é uma situação em que a lei lhes confere o direito de demandar em juízo para a garantia de seus direitos.
E assim o Tabelião viola o princípio da eficácia e da segurança jurídica. Isto porque as tais escrituras não têm essa eficácia!
Ao invés de desjudicializar, judicializa, provocando demandas judiciais que serão inúteis.
Um Tabelião de Notas que assim age não confere proteção nem mesmo àqueles que o procuraram com o intuito de obtê-la, faz mau uso da confiança que a sociedade nele depositou, transmitindo aos envolvidos na escritura e à sociedade em geral uma informação errônea, para não dizer falaciosa.
E tudo isto sem adentrar nos aspectos morais, éticos e socialmente aceitáveis em nosso país, porque é de uma evidência solar que no Brasil os costumes são monogâmicos.
Já que a união estável pode ser convertida em casamento, segundo a Constituição Federal, os trisais, se pudessem ser havidos como companheiros ou conviventes, poderiam passar a ter o estado civil de casados, casados a três, quatro, cinco ou mais pessoas.
Saliente-se que a bigamia, ou seja, o duplo casamento, é crime em nosso país, assim, estaria permitida a prática delituosa? O Tabelião de Notas estaria escriturando uma relação que poderia se transformar num crime?
O julgamento terá continuidade numa próxima sessão do CNJ.
*Presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Doutora em Direito pela USP e advogada
Publicação original: O Estado de São Paulo Digital – Blog do Fausto Macedo (26/04/2018)
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