CNJ DECIDE QUE CARTÓRIOS NÃO PODEM DECLARAR RELAÇÕES POLIAFETIVAS COMO UNIÕES FAMILIARES
Por Regina Beatriz Tavares da Silva*
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu em plenário, nesta terça-feira (26/6), pela procedência do pedido da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS).
Assim, está proibida a lavratura de escrituras de relação poligâmica como união estável e com efeitos de direito de família.
No pedido de providências da ADFAS nunca se pretendeu proibir que alguém viva uma relação a três, quatro ou mais pessoas, mas, sim, que os Tabelionatos de Notas cumpram a lei, que impõe a monogamia nas relações afetivas para que produzam os efeitos de união estável, assemelhados aos do casamento civil.
Já que existe lei, inclusive de ordem constitucional, que estabelece que a relação de natureza conjugal somente pode ser estabelecida entre duas pessoas, obviamente não pode um Notário descumprir o ordenamento legal.
O Tabelião de Notas deve cumprir a lei nos atos que lavra em seu Cartório e não tem autonomia para fazer a lei, o que é atribuição exclusiva do Congresso Nacional.
Desordem é o que havia antes do pedido de providências da ADFAS e, o que é pior, desordem incentivada por quem sequer dá atenção, mesmo sendo jurista, à nossa Lei Maior.
O que é óbvio: escrituras de união estável somente podem ser lavradas entre duas pessoas, teve de ser pedido ao CNJ pela ADFAS, por causa dessa desordem, para não dizer “bagunça” criada pelos que querem a desorganização de nosso sistema jurídico.
Quanto maior a desorganização, maior a judicialização, ou seja, maior o número de demandas judiciais.
Uma vergonha imaginar que esse fosse o objetivo de quem queria rasgar a Constituição Federal, que, repita-se, dita expressamente que a união estável pode ser constituída por duas pessoas, e, portanto, por casais e não “trisais”.
Mas o CNJ, ao julgar procedente o pedido de providências que elaborei, como presidente da ADFAS, colocou essa matéria no seu devido lugar.
O voto do Ministro João Otávio de Noronha, Relator do processo, como Corregedor Nacional de Justiça foi acompanhado dos votos da Conselheira e Desembargadora do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) Maria Iracema Martins do Vale, do Conselheiro e Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho (TRT5) Valtércio Ronaldo de Oliveira, do Conselheiro e Juiz de Direito do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) Márcio Schiefler Fontes, do Conselheiro e Juiz Federal da 2.ª Região Fernando César Baptista de Mattos, do Conselheiro e Advogado Valdetário Andrade Monteiro, e da Conselheira e cidadã de notável saber jurídico Maria Tereza Uille Gomes.
O voto do Relator deixou claro que a vontade das partes declarada em escritura pública deve estar em conformidade com o ordenamento jurídico, afinal, cabe ao Notário formalizar “juridicamente” a vontade das partes (art. 6º da Lei dos Cartórios).
Os atos cartorários têm que respeitar as normas legais. Se a Constituição não proíbe explicitamente a poligamia, proíbe pelo sistema jurídico, que é claramente fundado na monogamia. E se a lei não regulamenta o “poliamor” como relação familiar, é porque não reconhece a validade de escritura pública de poliafetividade como união estável. Estas foram as manifestações do Ministro João Otávio de Noronha, que sublinhou, por fim, que, se não fosse dada atenção ao sistema jurídico, seria desprezada a normatização das relações familiares, o que equivaleria a rasgar a Constituição e o Código Civil.
Sobre a divergência que se estabeleceu, ficou também atendido o pedido da ADFAS, porque ali se observou a impossibilidade de equiparação dessas relações poligâmicas à família. No entanto, essa divergência queria possibilitar a escritura de trisais como sócios de fato, ou seja, sem direitos de família e outros correlatos. Essa divergência, aberta pelo Conselheiro e Ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST) Aloysio Corrêa da Veiga, foi derrotada pela maioria.
Deve-se lembrar, como bem recordou a Presidente do CNJ e Ministra do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, em sua manifestação durante o julgamento, que sociedade de fato não foi o objeto do processo administrativo instaurado por iniciativa da ADFAS. Assim, não caberia ir além do que foi pedido, isto é norma processual que não poderia ser violada pelo CNJ.
Mas, além desse argumento de ordem processual, para ficarem vencidos o Conselheiro Aloysio Corrêa da Veiga, o Conselheiro e Procurador da Justiça Arnaldo Hossepian Salles Lima Junior, a Conselheira e Desembargadora do Tribunal Regional Federal (TRF3) Daldice Maria Santana de Almeida e o Conselheiro e Advogado Henrique de Almeida Ávila, é preciso lembrar que que uma sociedade de fato tem efeitos somente patrimoniais e dependentes de prova da contribuição financeira ou laboral de uma pessoa em prol da aquisição de bens que ficam em nome de outra pessoa, portanto, efeitos que dependem de prova dessa contribuição, a qual certamente não se faz por uma mera escritura ou declaração em Tabelionato de Notas, de modo que de nada ou pouco serve essa sugestão da divergência.
No entanto, também a divergência acabou dando total razão à ADFAS: trisais não formam família e por isto não podem ter direitos de família, por conseguinte, o Tabelionato de Notas não pode lavrar escritura de poligamia como se fosse família e com os respectivos efeitos; este foi o pedido de providências da Associação de Direito de Família e das Sucessões.
Observe-se que somente um voto foi contrário ao pedido de vedação de escrituras de poligamia, dado pelo Conselheiro e Juiz do Trabalho Francisco Luciano de Azevedo Frota, que dispensa comentários, já que contrário à lei brasileira.
Foram, portanto, doze votos pela procedência do pedido da ADFAS e um único voto contrário no CNJ.
*Regina Beatriz Tavares da Silva, presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Doutora em Direito pela USP e advogada
Publicação original: O Estado de São Paulo Digital – Blog do Fausto Macedo (26/06/2018)
Imagem: Unsplash