A POLIGAMIA E A DESIGUALDADE ENTRE HOMENS E MULHERES

Por Regina Beatriz Tavares da Silva*
A cultura monogâmica é uma conquista histórica e sua normatização é um marco na evolução sociocultural da humanidade. Negá-la ou mitigá-la representaria um grande retrocesso para nossa civilização, pondo em cheque os diversos efeitos benéficos que a monogamia propicia. Não é por acaso que, atualmente, a poligamia é ilegal ou proibida em toda a Europa e América, bem como na China e na Austrália, entre outros inúmeros países.
No Brasil, mesmo diante do reconhecimento constitucional da monogamia nas relações entre um homem e uma mulher, reiterado pelo Supremo Tribunal Federal nas uniões entre pessoas do mesmo gênero, foram lavradas escrituras públicas reconhecendo efeitos de união estável em relações poligâmicas, em violação de nosso ordenamento jurídico, as quais são eivadas de nulidade (leiam aquiaqui e aqui).

Para além da incontroversa insustentabilidade legal da poligamia com efeitos de direito de família, direito sucessório, direito previdenciário, entre outros, que as tais escrituras pretenderam atribuir a relações entre 3 ou mais pessoas, o que vai contra, inclusive, a Constituição Federal de 88, a abordagem neste artigo é especificamente o retrocesso que a poligamia causaria em nossa cultura.
Em artigo científico, Joseph Henrich, Robert Boyd e Peter J. Richerson demonstram, por meio de pesquisas quantitativas e qualitativas, os efeitos negativos da poligamia em contraposição aos avanços garantidos em culturas monogâmicas. Entre os benefícios garantidos em sociedades que presam por relações monogâmicas, destaca-se: 1. A monogamia reduz as taxas de criminalidade, incluindo homicídio, estupro, roubo, furto, e fraude, bem como diminui os abusos pessoais; 2. A monogamia diminui a desigualdade de gênero; 3. Ao transferir os esforços masculinos de buscar esposas para o investimento paterno, a monogamia aumenta o investimento infantil; 4. A monogamia reduz o conflito intrafamiliar, levando a menores taxas de negligência infantil, abuso, morte acidental e homicídio; e 5. A monogamia aumenta a produtividade econômica.
Cada um desses pontos poderia ser abordado extensivamente, no entanto, chamo a atenção para a desigualdade de gênero, dado que a busca pelo reconhecimento de equidade de tratamento entre homens e mulheres é algo presente em nossa sociedade. E a poligamia configura uma grave ameaça às conquistas até hoje garantidas.
Passo a descrever o referido estudo norte-americano e canadense, em que foram apresentadas estatísticas que comprovam as conclusões a que chegou.
Historicamente e ainda hoje, a maioria das culturas que permitem a poligamia permitem a poliginia (um homem com duas ou mais esposas) em vez da poliandria (uma mulher com dois ou mais maridos).
A realidade é que uma cultura poligâmica perpetua a desigualdade de gênero e essa desigualdade na balança costuma afetar mais profundamente as mulheres, uma vez que acentua sua subordinação ao marido.
Para explicar como ocorre na prática, o casamento poligâmico aumenta a competição por esposas, pois os homens casados permanecem disponíveis no “marriage Market” (“mercado de casamentos”). Frente a uma maior competição, homens se sentem legitimados e motivados a controlar suas consortes, assim como suas filhas e irmãs, o que resulta na desigualdade entre os gêneros masculino e feminino, além de estimular a violência doméstica.
Outra circunstância comum em relacionamentos poligâmicos é que os homens busquem casar-se com mulheres mais jovens, configurando uma relação familiar em que, por sua própria natureza, estimula a inveja, a competição e o conflito, com casos de co-esposas envenenando a prole uma da outra em uma tentativa de tirar vantagem da sua própria. E, embora o marido deva, em princípio, tratar igualmente as suas co-esposas, na prática, ele quase inevitavelmente favorecerá uma sobre as outras.
A questão evidenciada nesses casos é que a igualdade dentro do casamento e da família é menosprezada em relações de poligamia, independentemente do contexto cultural ou religioso em que seja praticada.
A monogamia, em contrapartida, diminui a competição no “marriage market” (“mercado de casamentos”) e, com isso, reduz a lacuna de idade entre os consortes, os esforços masculinos para controlar (“proteger”) as mulheres e a desigualdade de gênero.
Michèle Tertilt em seu artigo “Polygyny, women’s rights, and development” (Poligamia, Direito da mulher e desenvolvimento -) faz uma comparação entre índices que mostram como a desigualdade de gênero é mais acentuada em sociedades poligâmicas frente às monogâmicas.
O índice de analfabetismo acentuado e menor participação política de mulheres são características mais marcantes em países poligâmicos. A diferença entre os índices de desenvolvimento de gênero, construído pela ONU levando em consideração diversos fatores também é discrepante, como percebe-se na tabela abaixo:

Países Poligâmicos Países Monogâmicos
Índice de desenvolvimento do gênero feminino (GEM-2003)* 0. 0.50
Proporção de mulheres alfabetizadas (2000) 0.66 0.95

*Gender Empowerment Measure é desenvolvido pela ONU em escala que vai de 0 e 1, em ordem crescente de igualdade.
Poder-se-ia elencar aqui inúmeras outras informações a evidenciar a poligamia como um abuso aos direitos humanos e à dignidade da pessoa humana, como a taxa de natalidade, taxas de educação primária e secundária para crianças do sexo masculino e feminino, diferença entre homens e mulheres na infecção por HIV, idade do casamento, mortalidade materna, expectativa de vida, tráfico sexual, mutilação genital feminina, violência doméstica, iniquidade no tratamento de homens e mulheres perante a lei, gastos com defesa e direitos políticos e liberdades civis.
Se hoje o Brasil, juntamente com tantos outros países, tem um conjunto de normas e leis que regem o casamento moderno, ao qual se equipara a união estável, essas são fruto de longo desenvolvimento social e cultural, que foram incorporadas, inclusive, pela nossa moralidade. Legitimar o casamento poligâmico é dar um passo atrás nessa evolução e ratificar todas as graves problemáticas sociais acima apontadas.
*Presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Doutora em Direito pela USP e advogada
Publicação original: O Estado de São Paulo Digital – Blog do Fausto Macedo (09/05/28)

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