A ILEGALIDADE DAS ESCRITURAS DE UNIÃO POLIAFETIVA

Por Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli

Símbolo de um suposto “novo Direito de Família” brasileiro, as chamadas escrituras de uniões poliafetivas ganharam o noticiário até mesmo internacional. É claro que a divulgação escapou para o trágico: o Brasil aceita a poligamia, disseram veículos como Le MondeEl País e La Stampa1.

Na verdade, o Direito brasileiro não tutela uniões poligâmicas, e as escrituras que reconhecem efeitos jurídicos de união estável – pessoais e patrimoniais – a relações entre mais de duas pessoas são ilegais. Pela ordem constitucional (art. 226, §3º) e infra (CCB/02, art. 1.723) a monogamia é essencial ao reconhecimento de união estável2.

Argumentar com a ideia de que tais escrituras apenas constatam a existência fática de tais arranjos, declarando-os, é no mínimo temerário. O cidadão enxerga na escritura pública a chancela estatal que tal documento de fato carrega. A constatação de algo que é “quase jurídico” ou “em vias de tornar-se jurídico” fere qualquer compromisso entre o agente (tabelião) e o cidadão. As uniões poliafetivas não são jurídicas, e não podem atrair efeitos de Direito de Família.

Uma eventual reforma legislativa com o propósito de admitir a juridicidade dessas relações teria de modificar diversos aspectos do ordenamento, para evitar contradições. Por exemplo: a união estável, como se sabe, pode ser convertida em casamento. Se se reconhece como “união estável” uma relação entre três pessoas, é necessário admitir que essa mesma relação seja convertida em casamento. Estar-se-ia, então, diante de uma espécie de bigamia excepcionalmente autorizada? Essa e outras contradições revelam, também em uma visão sistemática, a não admissão da figura da união jurídica poliafetiva.

Em vista da gravidade do problema, há um pedido de providências feito ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pela Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) para que o órgão explicite aos titulares e substitutos dos Tabelionatos de Notas que tais escrituras não devem ser lavradas. O ministro João Otávio de Noronha, Corregedor Nacional de Justiça, já votou pela procedência desse importante pedido. A questão assume grande relevância social diante da possibilidade de se efetuarem muitas escrituras desse tipo.

O argumento com que se pretende legitimar esses atos é o mesmo que tem permeado parte substancial dos discursos em Direito de Família no Brasil: o da afetividade. Seria o afeto o elemento garantidor da juridicidade das relações familiares, bem como a chave interpretativa dessas mesmas relações. Com isso, se há uma relação afetiva, ainda que poliafetiva, é viável emprestar efeitos jurídicos, garantindo assim alguma forma de tutela por parte do Estado.

O problema está na inviabilidade de se operacionalizar algo como o afeto. Não se quer com isso desprestigiar os sentimentos. Antes pelo contrário: quer-se indicar que um sistema jurídico é incompatível com elementos tão nobres quanto amor e afeto, cuja compreensão deve ser reservada para estudos próprios, em diversas áreas, e por pessoas com formação específica. Em outros termos: os juristas não sabem e não saberão lidar adequadamente com o afeto. Interpretá-lo em situações reais exigiria uma racionalidade que um tomador de decisões jurídicas não tem.

Essa inviabilidade revela o tom fortemente retórico dos discursos que anunciam uma “virada” compreensiva do Direito de Família a partir da afetividade.

Sem dúvida, as relações familiares experimentaram uma grande mudança desde meados do século XX, principalmente com a contracultura. Uma nova realidade comportamental que atingiu, sem dúvida, o Direito. Mas, as influências específicas que essa revolução criará em Direito de Família (e não na experiência das relações particulares) exigem ainda, como sempre exigirão, uma decisão política. É dizer, variações comportamentais, emergidas a partir da revolução cultural (especialmente), e do “é proibido proibir” – que agora completa meio século – podem impactar decisões políticas legislativas, mas não criam um dever de tutela por parte de qualquer agente estatal sobre todas as “expressões” de comportamento afetivo e sexual.

Relativamente às uniões “poliafetivas” – na verdade uma prática muito antiga, que a civilização abandonou em prol da monogamia – a questão é singela: as pessoas, se quiserem, podem viver uma relação com outras duas, três ou mais. O que não se admite é a juridicidade desse arranjo, porque o Brasil adota a monogamia como pilar constitucional. E somente desloca o aparato estatal para proteger relações entre duas pessoas, caso, é claro, não estejam impedidas de casar (abre-se aqui a discussão sobre os efeitos jurídicos das relações paralelas, o chamado “direito dos amantes”, que certas correntes pretendem ver tuteladas como se fossem família, sempre sob o argumento do afeto). Daí o primeiro grande motivo para rejeitarem-se as escrituras públicas de poliafetividade.

Um outro aspecto, que deveria soar mais óbvio, e que já se adiantou ao início, diz respeito à própria figura do Tabelião de Notas. Agente da máxima importância, a quem o Estado confere o poder de dar fé pública a atos e fatos jurídicos, sua tarefa não pode ser banalizada. Ao reconhecer uma relação que não subsiste juridicamente como família, o notário se afasta do imperativo da legalidade, que lhe preside o ofício.

Realmente, “(…) quando o Tabelião de Notas, portador da fé pública, lavra uma escritura, declarando a existência de relação de três, quatro, cinco ou mais pessoas com direitos típicos da união estável, afirma inveridicamente à sociedade que tais relações entraram no mundo do Direito, que se tornaram relações jurídicas familiares e produzirão todos os efeitos ali mencionados”3.

E chega-se assim a mais um alerta (tempos difíceis nos quais é preciso pedir desculpas para dizer o correto): não se pretende afirmar que o Direito não acompanha as mudanças, ou a realidade das relações humanas. Como dito acima, acompanha deveras, e o direito de família brasileiro está cheio de exemplos disso. A questão relevante reside em saber como se opera esse acompanhamento da realidade.

Quando um determinado autor diz algo como “o Direito não pode fechar os olhos para a realidade das relações familiares”, essa colocação precisa ser compreendida com muito cuidado. Que Direito é esse? Aquela parte da técnica jurídica realizada perante um Tabelião entra nessa noção? É preciso responder com firmeza: não. O Direito que não fecha os olhos à “fértil realidade da vida” é uma referência ao legislador, único que pode manejar a ordem jurídica, pois tem autoridade para isso.

No Brasil, a insistência na ideia de que decisões judiciais, por exemplo, devem levar em conta todos os “valores”, sem apegar-se demasiadamente à “letra da lei”, foi criando um quadro muito problemático. Um substancialismo jurídico-decisório, como dirá Thiago Reis4. Para este autor, “se por trás de toda regra, de todo princípio, de todo instituto ou de toda relação jurídica há sempre uma substância que os legitima e informa, qualquer estrutura pode ser relativizada em nome de uma interpretação que afirme apreender e realizar essa substância”5.

E se todo caso, por mais simples que pareça, deve ser decidido com base na “tábua de valores da Constituição”, retira-se das regras jurídicas sua necessária vinculatividade. Aliás, é o que se tem visto: a própria CF/88 perde sua vinculatividade em nome dos valores a ela supostamente relacionados6.

É aí que entra a tirania do afeto, a alimentar o problema específico analisado no presente texto (“escrituras” de uniões poligâmicas). Se todo o direito de família é baseado no afeto – essa substância – então qualquer regra pode ser afastada para fazer valer tal sentimento.

Em outros termos, também essa ideia de que é possível fazer tais escrituras porque “é o que acontece na realidade da vida” surge como uma expressão – uma entre tantas – do cenário no qual está mergulhado, hoje, o Direito brasileiro. Um verdadeiro vale-tudo para driblar a legislação.

Se se pretende ver a ordem jurídica democrática preservada é preciso afirmar: não há uniões jurídicas poliafetivas. Escrituras que as reconhecem são nulas. E continuarão a ser até que o legislador venha a admitir a figura. É claro que isso dificilmente ocorrerá, afinal uma decisão como essa tem impactos negativos tanto dentro da família quanto fora dela (algo que se pretende discutir melhor numa futura coluna).

Talvez o conhecimento dessa vedação explique a tentativa de forçar a admissão das uniões poliafetivas pela via do ativismo judicial e (mais esta!) extrajudicial. Afinal, se o legislador constituinte não admitiu, basta invocar algum valor e fazer surgir na Constituição algo que lá não se inseriu.

É o momento de se entender que esse pensamento, que derrui o aparato normativo para a obtenção de determinados fins, desestabiliza mais ainda um país institucionalmente frágil e, ao final das contas, piora a vida do cidadão.

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1 Uma exposição das principais manchetes – a maior parte delas em tom pejorativo – pode ser lida em TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. Brasil: o país do ‘ménage à trois’. Estadão – Fausto Macedo. 30/4/2018. Acesso em 19/5/2018.

2 CF/88. Art. 226. §3º. “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.

3 TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. CNJ julga pedido de providências para que não sejam lavradas escrituras de poligamia. Estadão – Fausto Macedo. 26/4/2018. Acesso em 19/5/2018. [grifo nosso].

4 Dogmática e incerteza normativa: crítica ao substancialismo jurídico do direito civil-constitucional. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 11, ano 4, p. 213-238, abr./jun. 2017.

5 REIS, Thiago. Op. cit., p. 227.

6 Uma denúncia desses problemas foi feita em BORGARELLI, Bruno de Ávila. Crise do Direito Civil encontra focos de resistência – Parte 1. Migalhas. Acesso em 19/5/2018.

 
Fonte: Migalhas (22/05/2018)

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