A EMENDA DO DIVÓRCIO E A CULPA
Culpa é o descumprimento consciente de uma norma de conduta, ou, nas palavras de René Savatier, “a inexecução de um dever que o agente podia conhecer e observar” (Traité de la responsabilité civile, Paris: LGDJ, t.I, p. 5).
O descumprimento das normas de conduta tem como conseqüência a aplicação de sanção civil ao inadimplente, para que seja cumprida a finalidade do Direito, que é organização da vida em sociedade.
Note-se que também na ciência da psicanálise a culpa é essencial para estabelecer limites e possibilitar o convívio social (Otto Fenichel: Teoria psicanalítica, trad. Samuel Penna Reis, Rio de Janeiro: Edições Atheneu, p.1/7).
O casamento é uma relação jurídica, que gera deveres, como a fidelidade e o respeito pelos direitos da personalidade do outro cônjuge (Código Civil, art. 1.566).
Esses deveres, dentre outros, são as normas de conduta que regulam o casamento.
As sanções civis pela inexecução das normas de conduta que regulam o casamento são a perda do direito à pensão alimentícia (Código Civil, art. 1.704, caput), a perda do direito de utilização do sobrenome conjugal (Código Civil, art. 1.578), e a reparação de danos morais e materiais que tenham sido causados pelo descumprimento do dever conjugal (Código Civil, art. 186).
Excepcionalmente, o cônjuge que descumpriu gravemente dever conjugal, desde que não tenha aptidão curricular para o trabalho ou parentes em condições de prestar-lhe alimentos, permanecerá com o direito a uma pensão mínima, que não se confunde com a pensão alimentícia plena. Essa pensão mínima, além de sujeitar-se àqueles rigorosos requisitos, é constituída somente por aquilo que é indispensável ao pagamento das mais básicas e prementes necessidades, sem qualquer baliza no padrão de vida do casamento (Código Civil, art. 1.704, parágrafo único).
Se fosse eliminada a possibilidade de decretação da culpa na dissolução do casamento, por conseqüência, seriam eliminadas as sanções civis antes citadas, de modo que aquelas normas de conduta deixariam de ser deveres ou obrigações jurídicas e passariam a ser meras faculdades.
Passaria a ser meramente facultado ao cônjuge ser fiel ou respeitar a integridade física e moral do consorte, sem que nenhuma sanção pelo descumprimento dessas normas de conduta pudesse vir a ser-lhe aplicada. O cônjuge traído teria de pagar pensão alimentícia plena ao infiel; o cônjuge que tivesse sofrido maus tratos físicos ou morais também teria de prestar alimentos plenos ao agressor.
Somente no casamento, dentre todas as relações jurídicas, deixariam de ser aplicadas sanções civis ao descumprimento das normas de conduta, o que seria inadmissível.
Mesmo que conservada a possibilidade de aplicação do princípio da reparação de danos pela violação de dever conjugal, diante da existência de dano moral ou material, se mantida a pensão alimentícia plena ao culpado, isto significaria “tirar com uma mão” (condenação do culpado no pagamento de indenização) e “dar com a outra” (atribuição ao culpado do direito à pensão alimentícia), o que seria patente absurdo.
A Emenda 66/2010 eliminou os requisitos temporais do divórcio, de modo a facilitar a dissolução do casamento, que agora independe dos prazos que antes eram determinados pelo art. 226, § 6º da Constituição Federal.
Portanto, diante da mens legis dessa Emenda Constitucional de facilitação na dissolução do vínculo conjugal, além da espécie dissolutória pela mera impossibilidade da vida em comum, também é aplicável ao divórcio a outra espécie dissolutória que se baseia na culpa, desde que haja grave descumprimento de dever conjugal.
“Isso porque, para além do afeto, devem ser preservados deveres e responsabilidades, sem os quais a vida conjugal queder-se-á vazia de significado, sem viço e sem amparo aos direitos inerentes a essa vivência”, nas percucientes palavras da Ministra Fátima Nancy Andrighi, que prefaciou o livro A Emenda Constitucional do Divórcio, de autoria desta articulista (São Paulo: Saraiva, 2011).