A DECISÃO DO STJ SOBRE A MANUTENÇÃO DO INSTITUTO DA SEPARAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO
Introdução
No julgamento de Recurso Especial interposto por um casal que pretendia a homologação de condições firmadas em um processo de separação, o Superior Tribunal de Justiça assumiu uma posição da maior relevância para o direito de família brasileiro: o entendimento de que o instituto da separação – pelo qual se dissolve a sociedade conjugal, mas não o vínculo matrimonial – é vigente e perfeitamente possível para aqueles casais que não desejam apelar para o divórcio.
Parte-se da premissa de que a Emenda Constitucional n. 66 de 2010 (que alterou a redação do art. 226, §6º da Constituição Federal de 1988) apenas retirou da separação o caráter de condição para o divórcio.
O juiz de primeira instância havia alegado que a separação está abolida do ordenamento brasileiro, dando prazo para emenda do pedido. O Tribunal de Justiça manteve o entendimento.
A decisão do STJ, sob relatoria da Ministra Isabel Gallotti, repercute fortemente no pensamento jurídico nacional, tomado, neste assunto, por uma bipolaridade ideológica (os favoráveis e contrários à extinção do instituto da separação).
É importante entender o argumento favorável à extinção da separação, que pode ser dividido em duas ordens: uma de natureza (pretensamente) técnico-jurídica e outra de natureza metajurídica. Ambas têm importância e refletem a maneira com que vem sendo estudado, no Brasil, o fenômeno jurídico.
1. A Emenda Constitucional n. 66 de 2010 e o instituto da separação
Desde a EC 66/2010, grupos que atuam na área do direito de família e sucessões argumentam que a nova redação dada ao art. 226, §6º da CF/88 (“O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”) suprimiu o instituto da separação de direito (judicial ou extrajudicial), retirando possibilidade do binômio: dissolução da sociedade conjugal com ou sem a manutenção do vínculo matrimonial.
Sergio Barradas Carneiro, advogado que, à época na condição de deputado federal, apresentou o projeto que resultou na EC nº 66/2010, lamentou a decisão do STJ justamente por considerar que a separação não existe no ordenamento brasileiro1. Se se acatasse essa tese, ter-se-iam por não recepcionados – como entende Barradas Carneiro – dispositivos do Código Civil de 2002 que fazem menção ao instituto da separação, como o próprio art. 1.5712, que estabelece o rol das formas de dissolução e insere a separação judicial (inciso III) entre as causas terminativas da sociedade conjugal.
Mas, a redação do preceito constitucional não dá ensejo à extirpação da separação3. O casamento civil, diz, pode ser dissolvido pelo divórcio. Admite-se que o casamento pode ser dissolvido pelo divórcio direto, havendo uma supressão do biênio de separação de fato, mas também pode o casamento ser dissolvido pela conversão da separação judicial ou extrajudicial em divórcio, sem a necessidade de se aguardar o transcurso de um ano.
A retirada da menção expressa à separação não significa a sua eliminação: a noção de divórcio direto enquanto uma possibilidade não inviabiliza a dissolução da sociedade conjugal por meio da separação. O entendimento esposado por alguns de que a exclusão da sentença ‘após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos’, “varreu” do ordenamento jurídico brasileiro o instituto da separação não tem qualquer justificativa plausível. E não se argumente com a ideia de “cumprir a letra da lei”.
Cumprir fielmente o texto legal – diga-se com Lenio Streck -, no Estado Democrático de Direito, não é postura positivista (assim como subverter princípios ou criá-los sem qualquer base legal também não é uma postura neopositivista)4.
Ocorre que a compreensão de que a separação ainda é possível não é “ir contra a letra da lei (constitucional)”, já que não há vedação ao instituto. A observação do texto do art. 226, §6º da CF/88, interpretado em harmonia com o sistema, revela que não existe vedação à dissolução da sociedade conjugal por via de separação.
Em outros termos, não há sentido técnico-jurídico em se afirmar que, com a perda do status de “condição para o divórcio”, a separação fica extinta. Há duas razões para isso:
Em primeiro lugar, esse não era o único papel da separação (ser requisito do divórcio, estar em seu caminho como elemento necessário): a separação poderia ser, para muitas pessoas, já o último estágio a que poderiam chegar, pelas mais diversas razões. Notadamente – e como se verá mais adiante – para pessoas que por razões morais e religiosas não podem divorciar-se. Atrelar a existência da separação ao seu papel de estágio prévio ao divórcio é dar ao instituto uma veste parasitária, nada compatível com o fato de que sempre foi possível “parar” nesse estágio, vivendo-se nele, como única opção a muitas pessoas.
Em segundo lugar, mesmo que se admitisse que a separação fica “esvaziada”, isso não pode ser usado como argumento em prol de sua extinção. Se remanesce como alternativa de pouco uso, nem por isso se extingue. A observação do que se passa na realidade social pode – deve – inspirar a construção legislativa, mas a realidade da maioria não pode servir como medida da sobrevivência de um direito, mesmo que seja direito acionado por poucos. Esse não é um parâmetro para decidir o que há no ordenamento.
Há, contudo, uma argumentação de fundo, verificável na opinião dos que se opõem à sobrevivência da separação. Em linhas gerais, considera-se que o instituto fere um dos elementos mais caros a uma parcela da doutrina atual: o “princípio” da afetividade.
2. O argumento do afeto
Mesmo sendo evidente que o afeto não pode ser alçado a uma categoria tão relevante como a de princípio jurídico (diante do fato muito simples de que é impossível usar um sentimento, nobre que seja, como critério decisório), ele é utilizado como argumento-chave para diversos problemas no campo do direito de família. No especifico caso da separação, afirma-se que o divórcio seria a única “saída” possível para um casal que já não se sustenta enquanto tal pelo laço do afeto.
O problema é que a constatação da sobrevivência da separação não deve passar pelo filtro desse princípio, mas pelas normas do sistema jurídico, constitucionais et infra, onde se poderá verificar sua sobrevivência. Sói-se argumentar que a Emenda Constitucional n. 66 de 2010 a extinguiu, por retirar o vocábulo do texto, ou porque não se coaduna a separação com a “intenção do legislador”, ou porque é incompatível com o afeto que pauta o direito de família.
Quando se avança para esses argumentos, percebe-se o problema central desse embate. Há uma evidente mixagem de elementos interpretativos muito diferentes entre si, o que acaba por conferir uma coloração sincrética às análises do problema. O sincretismo metodológico – já o quadro verificado por Hans Kelsen na época de sua Teoria Pura, e que em muito a justifica – dá as caras e as cartas no direito brasileiro deste quadrante histórico. Assiste-se a essa situação não apenas no direito civil5, como também no âmbito da interpretação constitucional6.
A insistência em dizer que a separação é incompatível com o sistema – isto é, que ela já não sobrevive em face dele – alinha-se à retórica da principiologia e a movimentos como o neoconstitucionalismo (acatada embora a plurivocidade desse termo7).
Não se está a defender uma pretensa neutralidade no trabalhar com o direito – o que é impossível8 – mas, isto sim, que se empreenda um esforço em desbastar o sistema de elementos muitas vezes enxertados no processo interpretativo, e recebidos como se fossem saudáveis.
Uma observação mais rigorosa, que afaste o paradigma do afeto e que deixe de lado a noção – já esbatida – da voluntas legislatoris encontrará, nesse rescaldo argumentativo, um texto constitucional que não veda a separação, e um sistema que não a repudia. Há evidente harmonia sistemática.
3. A vedação ao retrocesso em face da separação
Fala-se, também, na aplicação a esse tema de um princípio da vedação ao retrocesso social. Mesmo que se admita a incidência desse princípio em uma situação qualquer, não se pode extrair da simples afirmação da existência da separação um atentado contra o “progresso”. Também este termo é plurívoco, e seu manuseio histórico demonstra que a concepção do que seja progresso está mais relacionada aos ditames do estamento dominante numa época do que ao respeito a uma noção absoluta (por mais que ela exista) de Progresso.
Descendo dessa abstração, ficará a pergunta: por que a permanência da separação representa um retrocesso social? Em que a existência desse instituto fere a experiência social?
É importante estabelecer aqui uma delimitação. Não se deve fazer essas perguntas no bojo do processo interpretativo das regras constitucionais e infraconstitucionais. Não é a resposta a tais questionamentos o que assegura a “vida” ou a “morte” da separação. Mas, respondê-los faz parte do enfrentamento da questão sob um ponto de vista mais amplo, que vai além da observação do sistema jurídico e toma também alguns elementos sociais.
Repita-se: esses elementos não ditam o que está no sistema jurídico, mas contribuem para a discussão política, que tem seu lugar. Essa segmentação é que propicia um estudo na contramão da mixagem metodológica mencionada anteriormente.
Feita essa advertência, é relevante dizer que a permanência do instituto da separação contempla toda uma parcela da população que não pode e não quer recorrer ao divórcio, como os devotos da Igreja Católica Apostólica Romana, que afirma a indissolubilidade do vínculo conjugal. O Direito Canônico não reconhece o divórcio, mas admite a separação de corpos, em casos delimitados.
Mesmo se se arrancar para o tão mal utilizado princípio da dignidade da pessoa humana, é duvidoso que se chegue à conclusão de que a separação não é mais viável. Se um casal tem total direito de se divorciar, por que não pode simplesmente optar por se separar e de forma superveniente, se for o caso, reatar a sociedade conjugal ou decidir pelo divórcio?
Em outros termos: se se “mergulhar” no argumento da dignidade da pessoa humana, parece mais adequado – repita-se, dentro da lógica dos que insistem em usar esse princípio para tudo – dar a um casal a liberdade de simplesmente se separar judicial ou extrajudicialmente (para futura reavaliação da própria situação) do que os levar ao divórcio (muitas vezes contra a vontade de ambos ou contra os princípios que regem suas vidas).
Mais: o posicionamento “anti-separação” dessa parcela doutrinária deixa outro rastro de desconfiança. O maior leque de opções jurídicas sempre é visto como algo saudável, nesse quadrante histórico onde o direito de família experimenta diversas viragens e revoluções. Por que então, no caso da separação, argumenta-se de forma a restringir esse leque? Isso não fere aquele ideal eudemonista tão valorizado hoje?
Diante disso, a rejeição pura e simples da separação parece estar alinhada, realmente, a certos interesses puramente ideológicos e subliminares.
4. O lugar de cada questão
Tudo deveria ser muito mais simples, se a luta contra o instituto da separação se desenvolvesse no campo político – o único possível, aliás, neste caso. A decisão do STJ, em “condições normais de temperatura e pressão”, seria vista como correta, mas nada impactante. Mas, como houve um esforço muito grande em demonstrar a inviabilidade jurídica da separação, decisões desse tipo acabam entrando em um ringue já movimentado.
Não se quer com isso dizer que uma decisão judicial não possa e não deva ser questionada e analisada criticamente. De fato, esse é um dos mais relevantes papeis da doutrina9, e sua perda é muito prejudicial ao direito. Mas, é necessário que a Academia compreenda que a decisão patrocina justamente o aspecto técnico-jurídico. Não subsiste, nela, aquele feixe de fatores extrassistemáticos que tem invadido parte considerável das sentenças. Verifica-se um respeito às disposições sistemáticas.
Isso não exclui, logicamente, a atuação política, desenvolvida em outra frente. O que se quer dizer é que a observação da permanência da separação é uma “luta” que ocorre dentro das raias do sistema jurídico, com uso de seus referenciais internos.
5. Conclusão
Se a separação é uma estranha no ninho, este ninho não é o sistema jurídico, ao qual ela perfeitamente se acomoda: o ninho é, na verdade, o pensamento de parte do establishment jurídico atual, consideravelmente divulgado no Brasil. O jogo democrático admite e se enriquece com as contribuições dessa parcela da comunidade jurídica.
Mas, é preciso que se compreenda que, em face do sistema hoje vigente, sua empreitada pelo fim da separação deve ocorrer nas trincheiras políticas. Lobby, projetos de lei, pressão no Congresso Nacional. Que se reforme a Constituição, para aí tomarem-se por não recepcionados os dispositivos do Código Civil sobre a matéria.
Em outras palavras, o juízo de valor feito por alguns sobre a separação deve resultar numa reunião de esforços para sua derrubada pelas vias corretas, ou seja, as vias legislativas, se assim o desejam. Do contrário, estar-se-ia atribuindo ao juiz a tarefa de, em razão de suas perspectivas pessoais, indeferir um pedido de separação, por exemplo. Em verdade, o juiz pode repudiar o instituto, mas precisa aceitar sua possibilidade.
A decisão do STJ não coloca uma pedra na situação, é claro, mas reaviva algo que o direito brasileiro tem visto perder-se: o respeito às disposições do ordenamento. E, com isso, representa um passo importante na contramão do deletério ativismo judicial.
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1 STJ publica decisão que significa grande retrocesso para o Direito das Famílias no Brasil.
2 CC/02. Art. 1.571. A sociedade conjugal termina: I – pela morte de um dos cônjuges; II – pela nulidade ou anulação do casamento; III – pela separação judicial; IV – pelo divórcio. § 1º. O Casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio, aplicando-se a presunção estabelecida neste Código quanto ao ausente. § 2º. Dissolvido o casamento pelo divórcio direto ou por conversão, o cônjuge poderá manter o nome de casado; salvo, no segundo caso, dispondo em contrário a sentença de separação judicial.
3 “(…) a EC n. 66/2010 não revogou expressamente as normas do CC que tratam da matéria. Assim, a sua manutenção se impõe, permanecendo para o casal a possibilidade de optar pela separação consensual ou judicial (litigiosa), com apuração nos próprios autos de eventual conduta culposa praticada por um por ambos os cônjuges” (A. L. B. Czapski, in Código Civil interpretado, Costa Machado (org.) e Silmara Chinellato (coord.), 8.ed., Barueri, Manole, 2015, p. 1349).
4 L. Streck, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, 10. Ed., Porto Alegre, 2011, pp. 48-49.
5 Cf., a tal propósito, O. L. Rodrigues Junior, Estatuto epistemológico do direito civil contemporâneo na tradição de civil law em face do neoconstitucionalismo e dos princípios, O Direito 143 (2011), II, pp. 43-66, cit. p. 46 ss.
6 Cf., com um grande refinamento teórico e senso crítico, V. Afonso da Silva, Interpretação constitucional e sincretismo metodológico, in V. Afonso da Silva (org.), Interpretação constitucional, São Paulo, Malheiros, 2005, pp. 115-143. cit. p. 133 ss.
7 L. L. Streck, Verdade e Consenso, 5.ed., São Paulo, Saraiva, 2014, p. 46, explica que esse termo (neoconstitucionalismo) “embora tenha representado um importante passo para a afirmação da força normativa da constituição na Europa continental, no Brasil acabou por incentivar/institucionalizar uma recepção acrítica da Jurisprudência dos Valores, da teoria da argumentação de Robert Alexy (…) e do ativismo judicial norte-americano (…)”. Esse autor ainda explica que, apesar da relevância inicial do movimento, seu desenvolvimento no Brasil resultou “em condições patológicas que, em nosso contexto atual, acabam por contribuir para a corrupção do próprio texto constitucional. Ora, sob a bandeira “neoconstitucionalista” defendem-se, ao mesmo tempo, um direito constitucional da efetividade; um direito assombrado pela ponderação de valores; uma concretização ad hoc da Constituição e uma pretensa constitucionalização do ordenamento a partir de jargões vazios de conteúdo e que reproduzem o prefixo neo em diversas ocasiões (…)” (p. cit.).
8 Cf. O. L. Rodrigues Junior, Dogmática e crítica da jurisprudência (ou da vocação da doutrina em nosso tempo), RT 891 (2010), pp. 65-106, cit. p. 72-73.
9 Cf., para uma observação do papel da doutrina e de seu estado de crise, O. L. Rodrigues Junior, Dogmática cit.
Vitor Frederico Kümpel
Juiz de Direito em São Paulo e doutor em Direito pela USP.
Bruno de Ávilla Borgarelli
Graduado em Direito pela USP.
Publicação original: Migalhas