30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO E O COMPROMISSO DE PROTEÇÃO À FAMÍLIA
Por Regina Beatriz Tavares da Silva [1], originalmente publicado no Estadão, Blog do Fausto Macedo
Promulgada no dia 5 de outubro de 1988, a Constituição da República Federativa do Brasil comemora 30 anos de vigência neste mês de outubro. O clima de celebração pelo marco democrático que nossa atual Constituição representa enseja uma maior reflexão sobre seus desdobramentos nesses 30 anos de história.
A Constituição de 1988, atenta a profundas transformações ocorridas nas relações de família no decorrer do século passado, trouxe importantes inovações no Direito de Família, de modo a propiciar-lhe maior proteção por parte do Estado.
Entre as mudanças destaca-se o estabelecimento do princípio de igualdade entre os cônjuges, com base na isonomia entre homem e mulher (Constituição Federal – CF, art. 226, § 5.º); o princípio de paridade entre os filhos, de modo a reconhecer iguais direitos e qualificações aos filhos oriundos ou não da relação matrimonial (CF, art. 227, § 6.º); e a tutela de relações familiares oriundas de união estável, enfatizando-se a facilitação de sua conversão em casamento (CF, art. 226, § 3° e §4.º).
Todos esses princípios constitucionais foram estabelecidos tendo em vista a preservação da dignidade da pessoa humana e foram bem recebidos pelo Direito de Família. Mas isto não significa dizer que houve uma constitucionalização de matéria própria do Direito Civil. Houve, isto sim, um tratamento pela Constituição Federal de institutos relevantes de Direito Civil, sem interferir na autonomia deste ramo do Direito. A respeito cito a relevante tese defendida na USP por Otávio Luiz Rodrigues Jr., intitulada “Direito Civil Contemporâneo”, editada pela Gen-Forense Universitária.
As novas garantias constitucionais ensejaram, inclusive, a substituição do Código Civil de 1916 (Lei n.º 3.071, de 1.º de janeiro de 1916) pelo Código Civil de 2002 (Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002) atualmente em vigor, adaptando-o aos valores e princípios estabelecidos pela Constituição Federal.
Já com 30 anos, essas inovações constitucionais podem não ser mais tão novas assim, mas configuram conquistas ainda atualíssimas e que se encontram em harmonia com os anseios da sociedade brasileira. No entanto, essas valiosas conquistas têm sido ultrajadas, motivo pelo qual tenho empenhado muitos esforços, como Presidente da Associação de Direito de Família e das Pessoas (ADFAS), contra as investidas inconstitucionais de mal-intencionados no âmbito jurídico.
Uma dessas investidas inconstitucionais é a de tentar implementar a poligamia consentida (união poliafetiva) e não consentida (união simultânea) no Brasil como entidades familiares. Que fique claro: nossa Lei Maior prevê expressamente que a união estável é monogâmica, podendo ser constituída somente por duas pessoas (CF, art. 226, § 3.º).
E a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) pelo reconhecimento de uniões homoafetivas em nada afetou a natureza monogâmica da união estável. A monogamia vigora também na relação entre pessoas do mesmo sexo! Esse princípio é por mim examinado detalhadamente no livro recentemente lançado “Família e Pessoa: uma questão de princípios”, da Editora YK, que coordeno juntamente com Ursula Basset.
Monogamia é o pilar constitucional da união estável e do casamento; sem ele, as entidades familiares desmoronariam. Defender o contrário é rasgar a Constituição naquilo que se refere ao Direito de Família. Até porque o princípio da monogamia está intrinsecamente relacionado com o princípio da igualdade entre os companheiros. Um dos efeitos nefastos da poligamia em uma sociedade é exatamente o de gerar desigualdades entre homens e mulheres, como alertei em artigos anteriores.
Sobre essa luta, relembre-se a recente conquista da ADFAS na decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em julgamento do Pedido de Providências que realizamos, vedando a lavratura de escrituras públicas de “uniões poliafetivas” como uniões estáveis por Tabelionatos de Notas em todo o Brasil. A invalidade dessas escrituras está relacionada à infração de norma jurídica cogente, prevista na legislação constitucional e infraconstitucional.
Outra face dessa batalha pela proteção de nossa Constituição Federal reside nos trabalhos da ADFAS como amicus curiae nos Recursos Extraordinários n. 1.045.273/SE e n. 883.168/SC e, respectivamente de relatorias dos Ministros Alexandre de Moraes e Luiz Fux, que tramitam no Supremo Tribunal Federal, nos quais se pleiteia que amantes recebam pensão por morte do consorte falecido. Ou, em outras palavras, que a pensão por morte seja dividida entre o consorte e o seu amante em caso de adultério.
A ADFAS, como amicus curiae e atenta aos princípios norteadores da Constituição Federal, tem chamado atenção para o fato da relação de adultério ser condenável no Direito brasileiro e não poder gerar direitos.
Em resumo, o desafio atual diante de nossa Constituição está em enfrentar o oportunismo de quem busca fazer valer opiniões contrárias ao texto constitucional.
Outros dois Recursos Extraordinários que se encontram em tramitação no STF também causam imensa preocupação. São os RE 878.694-MG e RE-646721-RS, em que a ADFAS também foi admitida como amicus curiae, em que foi declarada a inconstitucionalidade do art. 1790 do Código Civil, que distinguia os efeitos sucessórios da união estável em relação aos do casamento.
Com a devida vênia à decisão não unânime dos Excelentíssimos Ministros nesses Recursos Extraordinários, o reconhecimento da união estável como entidade familiar foi uma grande conquista trazida pela Constituição, mas não isso não significa, obviamente, que ela seja igual em tudo ao casamento, do contrário, seriam uma mesma e única forma de constituição de família. A diferenciação de regimes jurídicos entre casamento e união estável é, assim, pressuposto lógico para a própria existência dos dois tipos de entidade familiar.
Desse modo, é perfeitamente factível entender que o tratamento diferenciado entre cônjuge e companheiro encontra guarida na própria Constituição Federal, que distinguiu entre as duas situações jurídicas. E o ordenamento jurídico constitucional não impede que a legislação infraconstitucional discipline a sucessão para os companheiros e os cônjuges de forma diferenciada, tendo o Legislador ordinário competência para estabelecer essa diferenciação em termos juridicamente adequados.
Nessa toada, a reflexão sobre os desdobramentos da Constituição brasileira nesses 30 anos repousa sobre o questionamento de até que ponto suas garantias têm sido resguardadas. Até que ponto há o respeito por uma interpretação adequada aos textos de nossa Constituição e até que ponto têm sido criados argumentos amparados em uma “constituição imaginária”?
Como atuante na área de Direito de Família há 38 anos, ao olhar para a trajetória construída desde a promulgação da Constituição Federal, faz-se renovado o compromisso em buscar incansavelmente a proteção à família brasileira, base da sociedade que conta com especial proteção do Estado, para utilizar termos postos pela própria Constituição (art. 226, caput).
[1] Presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Doutora em Direito pela USP e Advogada