STF INICIOU O JULGAMENTO SOBRE AS FORMAS DE DISSOLUÇÃO CONJUGAL

Por Regina Beatriz Tavares da Silva*

O STF iniciou no dia 25 de outubro o julgamento do Recurso Extraordinário 1.167.478/RJ, Relator Ministro Luiz Fux, em que a ADFAS é amicus curiae e realizou sustentação oral.

O Tema 1.053 de Repercussão Geral versa sobre a subsistência da separação como instituto autônomo e também se indaga se permanece como requisito para o divórcio após a promulgação da EC 66/10.

A sustentação oral foi feita por Dr. Danilo Porfirio de Castro Vieira, que apresentou os principais fundamentos da ADFAS sobre a manutenção do instituto da separação.

Após as sustentações orais, na Sessão do dia 25 de outubro, votaram os Ministros Luiz Fux e Cristiano Zanin pela supressão do instituto da separação e os Ministros André Mendonça e Nunes Marques votaram pela manutenção do instituto da separação como autônomo. Portanto, a votação está empatada no que se refere à constitucionalidade do instituto da separação.

No que se refere aos prazos que antecediam o divórcio, antes da EC 66/10, os quatro Ministros votaram por sua supressão do ordenamento jurídico.

A Sessão de Julgamento do Tema 1053 terá continuidade em 08 de novembro deste ano.

A depender do entendimento do STF, ocorrerão graves violações aos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal.

Com a EC 66/10 a Constituição mudou para introduzir o divórcio direto, em seu artigo 226, § 6º, eliminando o prazo que antes existia de um ano de separação judicial ou extrajudicial para que as pessoas casadas pudessem se divorciar.

O divórcio foi facilitado, o que já era um anseio social. A separação também foi facilitada, já que não tem mais o prazo de um ano de distanciamento conjugal para sua decretação por pedido unilateral. Até aí, nenhum problema, muito ao contrário.

Porém, uma corrente de pensamento passou a interpretar que teria sido eliminado o próprio instituto da separação e não só a sua existência como requisito do divórcio. Se esta interpretação for aceita pelo STF, ocorrerão muitas violações à Constituição Federal, aos direitos fundamentais ali previstos, que, a seguir, são destacados:

Direito fundamental à liberdade no exercício de direitos em razão da crença

O primeiro direito fundamental violado pela interpretação segundo a qual estaria eliminada a separação em nosso ordenamento jurídico é aquele previsto no artigo 5º, inciso VIII, da CF, pelo qual é assegurado o exercício de direitos em razão da crença.

Exatamente por ser um Estado laico, em nosso país é inviolável a liberdade no exercício de direitos em razão da crença.

Em várias correntes evangélicas e no catolicismo, o vínculo conjugal é indissolúvel, de modo que somente a separação é permitida a quem professa essas religiões. Se desaparecer o instituto da separação, restaria apenas o divórcio como forma de dissolução conjugal. Impedidos de se divorciarem por sua crença, esses religiosos teriam duas opções: viver sob o estado civil de casados e na situação irregular de separados de fato perante o Estado ou divorciar-se em desrespeito aos preceitos religiosos.

Observe-se que a separação fática não modifica o estado civil, não extingue por si só o regime de bens e os deveres conjugais, enquanto a separação judicial ou extrajudicial opera tudo isto, já que dissolve a sociedade conjugal (CC, artigo 1.576). A separação meramente fática cria um limbo, que efetivamente não se equipara à separação judicial ou extrajudicial.

Portanto, a interpretação que pretende eliminar o instituto da separação viola o direito fundamental à liberdade de regularização do estado civil, por ser a forma de dissolução conjugal admitida por quem não pode se divorciar em razão de sua crença.

Direito fundamental à liberdade

O segundo direito violado pela interpretação segundo a qual deveria ser declarada a inconstitucionalidade das normas sobre a separação judicial é o direito à liberdade (CF, artigo 5º, caput).

Há casais, independentemente do credo, que, diante de crise conjugal, não pretendem a dissolução do vínculo conjugal e necessitam da separação para a regularização de seu estado civil. Desse modo, com a separação, podem restabelecer a sociedade conjugal a qualquer tempo, na conformidade do artigo 1.577 do Código Civil. Note-se que o Conselho Nacional de Justiça indeferiu o Pedido de Providências 0005060-32.2010.2.00.0000, realizado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), para modificação da Resolução CNJ 35 e considerou que somente houve a supressão do prazo de separação pela EC 66/10.

O Código de Processo Civil de 2015, após amplo debate, adotou a separação como instituto autônomo, o que é mais um reforço relevante à sua recepção pela EC 66/10.

Direitos fundamentais à integridade física e psíquica e à honra

Outros direitos seriam violados pela supressão do instituto da separação: a integridade física e psíquica e a honra, que se encontram na cláusula geral de tutela da personalidade – a dignidade da pessoa humana (CF, artigo 1º III).

Isso porque é nas disposições legais do Código Civil sobre a separação judicial que estão estabelecidas as consequências sancionatórias do descumprimento dos deveres conjugais (artigos 1.578 e 1.704), sendo que não foram inseridas no divórcio porque aquele diploma entrou em vigor quando o divórcio era constitucionalmente conversivo. Antes do divórcio as pessoas deveriam estar separadas e com esses assuntos resolvidos.

Assim, embora a corrente que pretende a supressão da separação alegue que o faz para defender a laicidade do Estado brasileiro, o intuito é a eliminação das consequências sancionatórias do descumprimento dos deveres conjugais, transformando-os em meras recomendações, já que dever sem sanção não é jurídico.

Alega-se que descabe falar em culpa nas relações de família, quando, em verdade, culpa é o descumprimento consciente de uma norma de conduta. Se deixarem de existir normas de conduta, deixaria de existir o próprio casamento, como pontua ANTONIO JORGE PEREIRA JR[1]. Se até a compra de um pãozinho gera deveres e direitos entre o consumidor e a padaria, obviamente que o casamento deve continuar a gerar direitos e deveres entre as pessoas que se casam.

Aliás, no posicionamento que a ADFAS adota a culpa não é condição essencial da dissolução conjugal. A dissolução conjugal cumulada com o pedido de declaração do descumprimento de norma de conduta é uma das opções para o cônjuge vitimado, que, pode escolhê-la ou preferir a espécie não culposa, em preservação, inclusive, de seu direito à liberdade.

No Código Civil os deveres conjugais são regulados no artigo 1.566, que estabelece a fidelidade e o respeito. O objeto do dever de respeito reside nos direitos da personalidade do cônjuge, como a vida, a integridade física e psíquica e a honra.

As consequências do descumprimento dessas normas de conduta são as seguintes: perda do direito à pensão alimentícia plena, com conservação somente dos alimentos mínimos (CC, artigo 1.704, caput e parágrafo único); e perda do direito ao uso do sobrenome conjugal, salvo as exceções expressas (CC, artigo 1.578, I, II e III).

É inaceitável que, diante da tutela aos direitos fundamentais e à dignidade humana, que o cônjuge vitimado pela agressão física ou moral – como a mulher vítima de violência doméstica – ou pela infidelidade, possa ser obrigado a prestar ao agressor pensão alimentícia plena, ou seja, que englobe o “necessarium vitae” e o “necessarium personae“.

Se for eliminado o instituto da separação, mulheres que sofrem violência doméstica e sustentam a casa terão de pagar pensão alimentícia ao agressor, o que importa em violação ao artigo 226, § 8º, pelo qual “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações“. Evidente seria o incentivo à violência se o homem agredisse a mulher e ainda fizesse jus a receber dela pensão alimentícia plena[2].

Também inaceitável seria obrigar a pessoa do cônjuge traído a pagar ao outro alimentos plenos, que têm como parâmetro as possibilidades de quem presta a pensão e todas as necessidades de quem a recebe, da alimentação ao lazer, passando por habitação, vestuário e até mesmo educação, entre outras despesas do cônjuge infiel, como, por exemplo, tratamentos de natureza estética.

Isso equivaleria a endossar a violação à integridade física e moral de uma pessoa, por ser casada, em desacato ao princípio da dignidade da pessoa humana.

No mesmo sentido, não há como aceitar que o cônjuge que sofre essas violações seja forçado a calar-se em relação ao nome de sua família. Violação ao direito ao nome, e, portanto, à dignidade, esta é a consequência da interpretação que pretende a eliminação do instituto da separação.

Reitere-se que a eliminação das sanções civis ao descumprimento de dever conjugal equivaleria a transformar esses deveres em meras recomendações, como acentua a ministra Nancy Andrighi[3].

Também estimularia a poligamia, vale dizer, infirmaria o pilar do casamento que é a monogamia e levaria a grave contradição com as duas teses de Repercussão Geral recentemente firmadas sobre os Temas 526 e 529, que reconheceram a plena vigência do dever de fidelidade e, portanto, das consequências de seu inadimplemento, respectivamente:

É incompatível com a Constituição Federal o reconhecimento de direitos previdenciários (pensão por morte) à pessoa que manteve, durante longo período e com aparência familiar, união com outra casada, porquanto o concubinato não se equipara, para fins de proteção estatal, às uniões afetivas resultantes do casamento e da união estável (STF, RE 883.168/SC, rel. min. DIAS TOFFOLI, j. 03/08/21).

A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1723, §1° do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro. (STF, RE 1.045.273/SE, rel. min. ALEXANDRE DE MORAES, j. 21/12/20).

E não tem apoio o argumento de que o cônjuge violador poderia ficar sujeito a passar fome, diante dos alimentos indispensáveis que são assegurados ao culpado (CC, artigo 1.704, parágrafo único), que servem às necessidades básicas de quem não tem aptidão para o trabalho e parentes em condições de auxiliá-lo.

Mesmo que fosse possível considerar violação à privacidade o relato em processo judicial sigiloso de comportamentos do cônjuge praticados em violação aos deveres que assumiu no casamento, pelo princípio da ponderação, os direitos à honra e à integridade física e psíquica deverão prevalecer.

Considerações finais

Na doutrina, vários juristas de escol defendem a manutenção do instituto da separação. Conforme Rosa Maria De Andrade Nery: “A separação consensual e judicial, entretanto, para os casais que pretendem o término da sociedade conjugal, mas, por razões pessoais não queiram, ou o término do vínculo matrimonial, ainda é possível como admitido pelo CPC 23 III e 731 ss[4].

Também Carlos Alberto Dabus Maluf e Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf defendem a manutenção da separação judicial com ou sem culpa após a EC 66/10[5].

Como afirma Venceslau Tavares, “O direito ao divórcio não depende de comprovação da separação (judicial ou de fato). Remanesce, contudo, a separação judicial como uma faculdade conferida ao casal[6].

Cite-se, ainda, Lauane Andrekowisk Volpe Camargo, para quem “a separação não acabou, existe, e é uma opção não excluída pela EC 66/10[7].

A jurisprudência também é vasta no entendimento de que o instituto da separação permanece no ordenamento brasileiro após a EC 66/10, tanto de tribunais estaduais como do STJ[8].

Por último, temos de ter presente que a manutenção do instituto da separação e de suas normas, inclusive as que estipulam sanção a quem descumpre dever conjugal, serve também para que sejam aplicadas ao divórcio.

Como destaca o ministro Luis Roberto Barroso, a entrada em vigor de nova norma constitucional exige um diálogo entre o novo dispositivo e a legislação que se encontra vigente no ordenamento[9].

“A interpretação constitucional conduz-se sob a inspiração de determinados princípios cardeais, que a singularizam, dando-lhe um toque de especificidade. Dentre os princípios, destacam-se, para os fins do tópico aqui versado, o da supremacia da Constituição e o da continuidade da ordem jurídica. […] Merece relevo, por igual, o princípio da continuidade da ordem jurídica. Ao entrar em vigor, a nova Constituição depara-se com todo um sistema legal preexistente. Dificilmente a ordem constitucional recém-estabelecida importará em um rompimento integral e absoluto com o passado.”

Em suma, a eficácia direta da Constituição Federal em todo o ordenamento jurídico leva à convicção de que as regras sobre a separação, judicial e extrajudicial, tanto em relação ao instituto em si, como às sanções atinentes ao descumprimento de dever conjugal, foram recepcionadas pela EC 66/10, que se limitou a retirar os requisitos temporais do divórcio.


*Regina Beatriz Tavares da Silva. Fundadora e Presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Pós-Doutora em Direito da Bioética pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutora e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogada, fundadora e sócia de Regina Beatriz Tavares da Silva Sociedade de Advogados (RBTSSA).


[1] Antonio Jorge Pereira Jr: Da afetividade à efetividade nas relações de família. In Afeto e Estruturas Familiares. Maria Berenice Dias, Eliene Ferreira Bastos e Naime Márcio Martins Moraes (Coords.). IBDFAM/Del Rey Editora, p. 57/77.

[2] Washington de Barros Monteiro e Regina Beatriz Tavares da Silva: Curso de direito civil: direito de família. 43ª ed., São Paulo: Saraiva, 2016, p. 342 a 358.

[3] Fátima Nancy Andrighi. Doutrina prefacial in Regina Beatriz Tavares da Silva. Divórcio e Separação após a EC 66/2010. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012

[4] Rosa Maria de Andrade Nery. Instituições de direito civil – Família. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 360, v. IV.

[5] Carlos Alberto Dabus Maluf e Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf. O novo divórcio no Brasil, in O novo divórcio no Brasil, Carolina Valença Ferraz, George Salomão Leite e Glauber Salomão Leite (coords.). Salvador: Jus Podivm, p. 126-148. Carlos Alberto Dabus Maluf e Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf. Curso de Direito de Família, 3 ed., São Paulo: Saraiva, 2018, p.339.

[6] Venceslau Tavares Costa Filho; Torquato Castro Jr. Ao regular separação judicial, novo CPC tira dúvidas sobre instituto.  Acesso em: 9/6/2019.

[7] Lauane Andrekowisk Volpe Camargo, A Separação de o Divórcio após a Emenda Constitucional nº 66/2010. ob. cit., p. 326.

[8] A título de exemplo: STJ: REsp 1247098/MS, rel. min. MARIA ISABEL GALLOTTI, 4ª Turma, j. 14/3/2017, DJe 16/5/2017: “[…] A Emenda Constitucional n° 66/2010 não revogou os artigos do Código Civil que tratam da separação judicial. […]”. REsp 1.431.370/SP, rel. min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, 3ª Turma, julgado em 15/8/2017, DJe 22/8/2017: “A Emenda à Constituição nº 66/2010 apenas excluiu os requisitos temporais para facilitar o divórcio. 3. O constituinte derivado reformador não revogou, expressa ou tacitamente, a legislação ordinária que cuida da separação judicial, que remanesce incólume no ordenamento pátrio, conforme previsto pelo Código de Processo Civil de 2015 (arts. 693, 731, 732 e 733 da Lei nº 13.105/2015) […]”.

[9] Luís Roberto Barroso, A Constituição e o conflito de normas no tempo. Direito constitucional intertemporal. Revista da Faculdade de Direito, v. 1, n. 3, Rio de Janeiro, Uerj, 1995, p. 204.


Publicado em 23 de outubro de 2023.

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