A ADFAS (Associação de Direito de Família e das Sucessões) foi criada em 2014 por um grupo de juristas preocupados com o futuro do Direito de Família. Atua ativamente com o Direito de Família, Direito das Sucessões, Biodireito e áreas correlatas.

SENHA DO PERFIL E ACESSO A MENSAGENS PRIVADAS: TEXTO SOBRE ‘HERANÇA DIGITAL’ NO NOVO CÓDIGO CIVIL DIVIDE JURISTAS

Proposta em reforma prevê acesso a espólio com valor econômico e abre debate sobre direito e privacidade

Com a reforma do Código Civil, o livro que rege a vida dos brasileiros do nascimento à morte pode ganhar capítulos que englobam também a existência virtual.

Formulado por uma comissão de juristas, o projeto enviado ao Senado em fevereiro introduz conceitos como “herança digital” e cria mecanismos controversos para preservar a privacidade dos mortos, além de deveres dos pais em relação à atuação de filhos pequenos nas redes sociais.

Nos últimos anos, os tribunais brasileiros tiveram de tomar decisões quanto à transmissão de bens digitais entre mortos e herdeiros sem uma legislação própria para o tema. O projeto no Congresso visa a mudar isso ao criar uma definição do que pode compor a herança digital. A lista inclui senhas, dados financeiros, perfis de redes sociais, arquivos de conversas, fotos e vídeos, desde que dotados de “valor economicamente apreciável”. O termo usado para mensurar o espólio, por si só, já gera imprecisão, avalia o desembargador Mairan Gonçalves Maia Júnior, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, e membro da Associação de Direito de Família e das Sucessões

— É um elemento subjetivo que deve ser excluído por trazer incerteza — diz o magistrado, que critica os exemplos listados no texto do projeto. — A maior parte dos arquivos de conversas, vídeos e fotos não terá valor econômico. É um rol exemplificativo que confunde ainda mais.

Testamento

O entendimento é compartilhado pelo professor de Direito Civil da FGV Filipe Medon:

— Quem vai fazer essa diferenciação? Não é questão nem de ser vago, mas de prova — diz o professor, que acrescenta: — A regulamentação ficou de difícil execução.

No direito digital, os bens são divididos em patrimoniais, quando há valor econômico; e existenciais, no caso daqueles com caráter pessoal, como perfis, vídeos, fotos e mensagens. Estes só serão incluídos na herança digital caso tenham valor econômico pela força das circunstâncias, como poderia ocorrer com a página de um influenciador famoso numa rede social. Ao se enquadrarem nessa situação eles são classificados como bens híbridos.

Por envolverem a privacidade dos seus donos originais, o acesso a esses bens e aos existenciais pode gerar controvérsia. O projeto do Código Civil veda, como regra, o acesso dos sucessores do morto a mensagens privadas trocadas por ele em redes sociais. Com isso, se preservaria tanto a privacidade do falecido quanto a dos interlocutores vivos.

— A maioria das pessoas têm a percepção de que ao se comunicar a partir de WhatsApp ou de mensagens internas por redes sociais, como do LinkedIn ou Instagram, há proteção. Entendo que a regra tem de ser de não transmitir (as mensagens do morto aos herdeiros) — diz o advogado e professor de Direito Digital Renato Opice Blum.

Um entendimento distinto, já adotado em alguns casos, é o de que não haja restrições.

— O fato de você ter acesso a tudo não implica que se pode fazer o que quiser. Se você encontrar cartas em um baú (de um parente morto), ainda tem de proteger o sigilo — diz Medon, que afirma discordar da abordagem adotada pelo código. — O meu argumento é de que não há diferença ontológica entre os bens digitais e materiais nesse sentido. Por que, então, uma tutela diferente?

Segundo o texto proposto para o novo Código Civil, o autor da herança poderá também deixar em testamento se deseja que os herdeiros tenham acesso pleno ao arquivo digital. Há ainda exceções que garantem acesso às mensagens privadas mediante autorização judicial, demonstrado o interesse “próprio, pessoal ou econômico” do herdeiro. O texto indica que uma lei futura irá determinar por quanto tempo as plataformas devem guardar mensagens de falecidos. No caso daqueles sem herdeiros, os perfis deverão ser excluídos após um prazo de 180 dias da morte.

A previsão de destruição de páginas e mensagens privadas pode fragilizar a preservação de conteúdos de interesse histórico e cultural, principalmente quando se tratarem de figuras públicas. Meios de comunicação analógicos, como cartas pessoais, costumam servir de matéria-prima para biógrafos e historiadores:

— Temos o caso das cartas trocadas entre Dom Pedro I e a Marquesa de Santos. Elas só se tornaram públicas porque os herdeiros da marquesa as entregaram. Em qualquer cenário, nesse momento, há o interesse dos herdeiros e não se pode passar por cima disso. Os dispositivos do projeto criam restrições — diz Medon.

A proposta concede aos herdeiros também a possibilidade de solicitar a exclusão de uma conta online de um parente falecido ou tê-la convertida em memorial, uma prática já adotada por algumas redes sociais, como Facebook, Instagram e LinkedIn. Outras, como Tik Tok e X (antigo Twitter), não têm procedimentos equivalentes. O autor da herança pode ainda colocar no testamento se prefere uma das duas opções e deixar nela os meios de acesso aos seus perfis nas redes.

Em relação aos bens puramente patrimoniais, o projeto pode promover algumas mudanças. Entre os exemplos levantados pelo texto que se encaixam nesta categoria estão desde ativos de criptomoedas a milhas aéreas, passando por filmes, e-books e músicas.

Para Blum, o texto poderia obrigar empresas a rever uma restrição imposta aos últimos três:

— Alguns termos de uso de plataformas dizem que eles têm caráter personalíssimo, ou seja, não se transmitem com a morte. Se essa proposta passar, isso vai ter de ser repensado pelas plataformas.

Diretrizes

Caso o projeto já estivesse em vigor, processos na Justiça poderiam ter tido um fim diferente. Em abril de 2024, o Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu o direito de uma mãe acessar o arquivo digital do celular da filha morta. O caso é similar a outro na Alemanha, onde pais precisaram ir ao Judiciário para ter acesso ao perfil no Facebook da filha. Eles desejavam encontrar pistas para descobrir se a morte da jovem, atropelada por um trem, havia sido ou não um suicídio.

“Não se verifica justificativa para obstar o direito da única herdeira de ter acesso às memórias da filha falecida, não se vislumbrando, no contexto dos autos, violação a eventual direito da personalidade”, diz a decisão do desembargador Carlos Alberto de Salles sobre o caso brasileiro. O magistrado citou ainda a ausência de uma lei sobre o tema para basear a decisão.

Para João Archegas, pesquisador de Direito e Tecnologia no Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS), a inclusão de dispositivos específicos de herança digital no novo Código Civil é necessária para trazer mais segurança jurídica e previsibilidade nos julgamentos:

— O texto passaria a trazer, pelo menos, alguns exemplos do que poderíamos compreender como bem digital.

Fonte: O Globo

 

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