FAMÍLIAS LUTAM CONTRA PAIS QUE ABANDONAM FILHOS E VOLTAM PARA RECEBER HERANÇA

Entrevista realizada com Regina Beatriz Tavares da Silva, Presidente da ADFAS

No final de fevereiro, um vídeo viralizou ao expor a falta de uma lei que impeça filhos de dividirem a herança com pais que os abandonaram por décadas – uma questão juridicamente complexa, enfrentada por muitas famílias nos tribunais.

No vídeo, a repórter de TV Simone Braga compartilha um desabafo pessoal: foi abandonada pelo pai na infância e, agora, precisa destinar parte dos bens da irmã falecida a ele. O caso reacende o debate sobre ampliar as hipóteses de ações de indignidade, que afastam da herança herdeiros acusados de ilícitos.

Conforme o Código Civil brasileiro, pela ordem de vocação hereditária, na ausência de descendentes (como filhos e netos), os ascendentes (pais) têm prioridade na herança sobre os colaterais (irmãos, tios, sobrinhos, etc.)

O artigo 1.814 do Código Civil prevê a exclusão da partilha de bens apenas para herdeiros que tenham cometido homicídio doloso (ou tentativa), como ocorreu no caso da família Richthofen, além de outros crimes, como acusação caluniosa, violência ou obstrução do testamento.

Há mais de dez anos, tramita no Congresso o PL 867/2011, de autoria da senadora Maria do Carmo Alves (PP-SE), já falecida. O projeto amplia as hipóteses de exclusão da herança por indignidade, incluindo abusos sexuais e psicológicos cometidos pelos pais, além de abandono ou desamparo, “sem justa causa”, conforme o texto.

Aprovada no Senado, a proposta está parada na Câmara dos Deputados. Em setembro de 2024, o texto inicial recebeu o parecer favorável do deputado José Medeiros (PL-MT), relator do PL, e aguarda para entrar em pauta na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.

Além desse PL, outros dois tratam do mesmo tema. Entre eles, o PL 767/2024, protocolado em março do ano passado pelo deputado Marcelo Queiroz (PP-RJ), que trata especificamente da exclusão sucessória de genitores por “abandono afetivo”. A proposta ainda precisa passar por três comissões. Em entrevista à Gazeta do Povo, o parlamentar afirmou que, dentro de dois meses, assim que as comissões estiverem formadas, abrirá a coautoria para outros deputados.

Enquanto o tema não avança em Brasília e a lei não é estabelecida, a advogada Regina Beatriz Tavares da Silva, presidente da Associação de Direito da Família e Sucessões (ADFAS), aponta que uma forma de proteção é excluir, em testamento, o pai ou a mãe que abandonou o filho. Segundo ela, esse recurso ainda é pouco utilizado e, para ser eficaz, exige atenção aos detalhes jurídicos.

“O testamento é o caminho, mas precisa ser muito bem elaborado, pois a exclusão por abandono não está expressamente prevista na lei”, explica a jurista. “A deserdação tem fundamento no artigo 1.963 do Código Civil [sobre disposições testamentárias] em casos de desamparo apenas de quem sofre enfermidade grave ou doença mental, mas também em situações de injúria grave. Por isso, a minuta deve ser fundamentada neste segundo ponto. Um filho abandonado pelo pai tem sua autoestima abalada e sua reputação social afetada. Portanto, um filho sem pai configura uma ofensa à honra.”

“Abandono afetivo”, um erro de nomenclatura?

Regina Beatriz também vê um equívoco no uso da expressão “abandono afetivo”, frequentemente empregada em ações judiciais e até no PL do deputado Queiroz. A advogada argumenta que esse termo, ao caracterizar o ato que leva um pai à indignidade, pode dificultar o debate sobre o tema e gerar interpretações equivocadas nos tribunais.

“O nome está errado. Pode até constar na ação como ‘abandono afetivo’, porque a expressão virou um termo popular, mas é uma moda equivocada”, afirma a advogada. “É preciso esclarecer que se trata do descumprimento dos deveres do pai em relação ao filho. `Por isso, eu prefiro chamar de abandono moral, porque afeto não pode ser medido.”

“Como um magistrado pode julgar se existe ou não afeto?”, acrescenta Regina Beatriz. “Afeto é um sentimento. Portanto, é necessário usar expressões que tragam objetividade ao conceito de abandono.”

O advogado Charles Bicca, presidente da Comissão de Direitos da Criança, Adolescente e Juventude da OAB-DF, palestrante e autor de três livros sobre parentalidade e abandono afetivo, também destaca a confusão em torno do termo.

“As pessoas que são contra a tese do abandono afetivo muitas vezes confundem o conceito e argumentam que ninguém é obrigado a amar ninguém”, disse Bicca. “Não estamos falando de afeto, pois o direito não tutela o amor. O que o direito aborda é a obrigação do cuidado, conforme o artigo 229 da Constituição Federal: é dever dos pais assistir, criar e educar os filhos menores.”

Reviver a dor

Um dos livros de Bicca, intitulado Mãe, onde está meu pai?, traz histórias reais de abandono e evidencia os traumas que marcam esses filhos ao longo de toda a vida adulta.

“Há decisões em que o filho pede para retirar o nome do pai indigno da certidão de nascimento, para não carregar um nome que tanto o machuca”, contou Bicca. “Costumo dizer que o abandono afetivo é uma morte em vida; um trauma imenso, que perdura para sempre. Quando esses pais reaparecem para reivindicar a herança, reabrem feridas e forçam o filho a reviver essa dor. É cruel.”

O caso das irmãs Simone e Marlise  

Quando a advogada Marlise Braga Boschi, irmã de Simone, faleceu de Covid-19 aos 56 anos, em março de 2020, a jornalista enfrentou não apenas o luto, mas também o desafio de impedir na Justiça que o pai, ausente desde que elas tinham 10 e 6 anos, fosse reconhecido como herdeiro.

Na adolescência, apesar da resistência da mãe, que as criou sozinha após o divórcio, as irmãs tentaram contato com ele, mas não foram acolhidas. Segundo Simone, o pai pediu que não as procurassem mais, pois tinha outra família.

Décadas depois, Simone o buscou novamente — desta vez, para que ele renunciasse à herança, permitindo que ela e a mãe iniciassem o inventário de Marlise.

“Mais uma vez, ele disse que não queria falar comigo”, contou a jornalista. “Nem sequer perguntou sobre a morte da filha, mas pediu a relação de bens que ela deixou. Ainda me intimidou, dizendo para eu não esconder nada, pois ‘sabia como comprar juízes’. Tenho tudo gravado, mas a Justiça não me ouviu. Aos 80 anos, meu pai teve mais uma chance de me acolher como filha — e não quis.”

Simone perdeu a ação que pedia a declaração de indignidade (a exclusão do pai como herdeiro da irmã) em duas instâncias. Em abril de 2024, o desembargador José Carlos Maldonado de Carvalho, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), rejeitou o recurso. Ele entendeu que “o abandono parental não está entre as hipóteses do artigo 1.814 do Código Civil que permitem a exclusão de herdeiro por indignidade”, mantendo a decisão desfavorável do juiz Carlos Augusto Borges.

Em sua sentença, assinada em dezembro de 2022, o juiz Borges ainda destacou que o projeto de lei em tramitação no Congresso (referente ao de 2011) não se aplicaria ao caso de Simone, pois “a legislação em vigor é aquela vigente à época do óbito da autora da herança”.

A jornalista alega não ter sido ouvida em nenhum momento pela Justiça. Ela chegou a solicitar um recurso especial para apresentar sua defesa oral. No entanto, segundo Simone, novamente não teve a oportunidade de se manifestar. Com seu advogado, aguardou por quatro horas na sala online, mas nenhuma autoridade compareceu.

“No início do processo, na audiência de conciliação, meu pai apareceu deitado em uma cama, como se fosse inválido”, relembra Simone. “Antes de o juiz entrar na sala online, a filha dele [da segunda união], sem perceber que o microfone estava ligado, perguntou se ele queria colocar os óculos. Ele respondeu que não precisava, porque ‘não ia entrar dinheiro agora’.”

Três tribunais, diferentes processos 

O caso envolve diferentes processos judiciais em estados distintos. A ação de indignidade tramita na Justiça do Rio, enquanto a de partilha de bens segue no Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), em Loanda, cidade onde Marlise morava e enfrentava um longo divórcio litigioso.

Além disso, Simone moveu uma ação por “abandono afetivo” contra o pai, que tramita no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), em uma vara de Porto Alegre, onde supostamente reside o réu.

De acordo com a advogada Daniella Coelho, que assumiu recentemente a defesa desta ação, o oficial de justiça não conseguiu localizar o réu nos endereços fornecidos — incluindo um residencial geriátrico, citado na procuração de plenos poderes concedida à filha do seu segundo casamento, que o representa nas ações. O local informou que o idoso nunca morou ali.

“Estamos indo agora para a quarta diligência”, contou Daniella. “Se ele não for encontrado, ficará claro que, assim como fez por mais de cinco décadas, novamente se omite dos seus deveres de pai.”

Este ano, uma nova reviravolta no caso: a mãe das irmãs morreu e o pai entrou com uma petição para ser reconhecido como “único herdeiro necessário” de Marlise, tentando excluir Simone da partilha.

“Meu propósito hoje é mudar a lei no Brasil, dar um novo tratamento à exclusão de herança em relação à deserdação e à indignidade sucessória”, afirma Simone. “Posso ter perdido a ação, mas tenho uma história, e essa ninguém vai mudar. Está registrada. Não me deram o direito de falar. Muitos advogados nem queriam pegar a causa porque a lei não existe. É um tema ignorado no Brasil.”

A reportagem tentou contato com o pai de Simone por meio dos números disponíveis, mas as chamadas para o telefone fixo não foram completadas e o celular parece pertencer a outra pessoa. O espaço continua aberto para manifestações.

No DF, juiz exclui pai da herança  

Em setembro de 2024, no Distrito Federal, um caso semelhante ganhou destaque ao envolver a exclusão de um pai indigno da herança de sua filha com síndrome de Down, que havia falecido. A ação foi movida pelo outro filho do réu, com base em provas de abandono afetivo e econômico ao longo de 40 anos.

O pai chegou a apresentar fotos com os filhos e alegar que a ex-mulher dificultava o contato. Contudo, o juiz Manuel Eduardo Pedroso Barros, da 1ª Vara Cível de Samambaia, considerou o comportamento dele como abandono, tanto no aspecto afetivo quanto no material, e impediu que fosse beneficiado como herdeiro.

Em sua decisão, o magistrado Pedroso Barros destacou que “jamais admitiria a aplicação da lei para justificar uma situação claramente injusta”.

Pedidos de pensão 

Além das disputas por herança, pedidos de pensão também são comuns. Há oito anos, no Ceará, um idoso com câncer de próstata acionou a Justiça para receber auxílio financeiro dos três filhos que abandonou quando eles tinham 16, 12 e 7 anos, conforme o processo.

Por meio de uma liminar, o homem chegou a receber os valores solicitados. No entanto, no julgamento definitivo, o juiz Cléber de Castro Cruz, da 16ª Vara de Família de Fortaleza, negou o pedido, destacando que não seria justo impor aos filhos uma obrigação no presente, sem que o pai tivesse cumprido seus deveres no passado.

No parecer, o juiz afirmou que “constituem procedimento indigno de pai em relação a seus filhos as situações elencadas na Lei Civil por descumprimento dos deveres inerentes à paternidade (artigo 22, do ECA), dentre eles o abandono, material ou afetivo (artigo 1.638, CC). Tais situações legitimam a recusa à prestação alimentar de filhos em relação a seus pais, especialmente as que importem em abandono”.

Fonte: Gazeta do Povo – Angela Brito

 

 

 

 

 

Fale conosco
Send via WhatsApp