DANO EMOCIONAL À MULHER: NOVO CRIME DO CÓDIGO PENAL
O debate acerca da saúde mental ganhou novos contornos após a desistência da ginasta norte-americana Simone Biles em participar das finais da ginástica artística na Olimpíadas Tóquio-2020. Vencedora de várias medalhas de ouro na Olimpíada Rio-2016, a ginasta, considerada fenômeno de sua geração e grande favorita na sua categoria, surpreendeu o mundo após desistir para tratar de sua saúde psicológica.
Diferentemente do que ocorria no passado, a sociedade contemporânea dispensa especial atenção à saúde mental dos indivíduos. O estigma de fraqueza e desequilíbrio emocional de pessoas psiquicamente desordenadas passou a ser tratado como intercorrência médica comum, atingindo grande parcela da população. De certa forma, os tratamentos psicológicos e psiquiátricos, antes restritos aos âmbitos ambulatorial e manicomial, passaram a integrar o cotidiano da vida pós-moderna, auxiliando na desconstrução da ideia de inferiorização dos pacientes em tratamento mental, levando a questão para o centro do debate público.
Acompanhando o espírito de seu tempo, foi sancionada no último dia 28 a Lei 14.188/21, denominada “Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica”, com o objetivo de auxiliar no combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. A lei alterou o artigo 12-C da Lei 11.340/06 [1] (Lei Maria da Penha), possibilitando medida protetiva para resguardar, além da integridade física, a saúde psicológica da vítima. Foram também criadas uma qualificadora na lesão corporal com violência doméstica (CP, artigo 129, §13º) [2] e uma nova figura típica do CP, artigo 147-B, consistente na causação de dano psicológico à mulher.
Em que pese a Lei 11.340/06, artigo 7º, II [3], já contemplar a violência psicológica contra a mulher, com a edição da Lei 14.188/21, tal comportamento passa a configurar um novo crime, consistente, por exemplo, em atos de zombaria e humilhação da mulher, passam a ser crime.
A nova lei definiu como crime a violência psicológica praticada contra a mulher, consolidando a proteção contra a violência física e moral e o direito de viver plenamente, sem medo, traumas ou coações emocionais impostas por outrem. Incidirá nas penas do artigo 147-B (seis meses a dois anos de reclusão e multa, se a conduta não constitui crime mais grave) aquele que “causar dano emocional à mulher que prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação”.
Primeiramente, há de se tecer algumas críticas à técnica de redação legislativa, pois, conforme observado, o tipo começa com a descrição do resultado, citando as condutas criminosas do meio para o final do texto. Alguns tipos penais exigem um resultado específico para sua configuração, descrevendo, dessa forma, a conduta criminosa e o resultado. Não é o que ocorre com o CP, artigo 147-B, que descreve o resultado do abalo emocional da mulher causado por meio de algumas ações exemplificadas no texto. Ao invés de dizer que é “crime ameaçar, constranger, humilhar, isolar, manipular, chantagear, ridicularizar e limitar o direito de ir e vir da mulher, causando-lhe dano emocional”, o tipo penal começa com o resultado, dando margem de ampla interpretação para encaixar qualquer conduta ao tipo.
O tipo exemplifica sete ações nucleares. Ameaçar é a promessa de mal injusto e grave; constranger é causar embaraço, é a insistência inconveniente; humilhar é o subjugo, o rebaixamento moral, a depreciação física ou mental; isolar consiste em segregar a mulher de seu convívio social, em seu afastamento da companhia de amigos e familiares; manipular é empregar artifícios mentais e materiais de modo a interferir na vontade da vítima; chantagear é uma forma de ameaça acrescentada do emprego de fatos, verossímeis ou não, que prejudiquem a honra objetiva da mulher; ridicularizar é o ato de zombaria, a galhofa, a chacota que coloca a vítima como objeto de escárnio; e limitar o direito de ir e vir é a restrição de suas liberdades ambulatoriais, privando a vítima de sua livre locomoção por estar em sequestro ou cárcere privado.
Na elaboração do artigo 147-B, CP, o legislador praticamente reproduziu o texto do artigo 7º, II, Lei nº 11.340/06, deixando de fora as condutas de vigilância constante, perseguição e violação da intimidade e privacidade da mulher, vez que já presentes no crime de perseguição, ou stalking, do CP, artigo 147-A [4].
Ponto que não nos parece claro é a utilização do termo “ou qualquer outro meio que cause prejuízo à saúde psicológica ou autodeterminação”. Trata-se da utilização de tipo vago, sem descrição de conduta, que confere ampla margem de interpretação aos operadores da lei. Além de detalhar as condutas, salutar seria a descrição da ordem do abalo psicológico ou emocional, a título de não dar azo à utilização da Justiça Criminal como meio reparatório de ofensas de pequena repercussão.
Por se tratar de crime comum, qualquer pessoa poderá ser sujeito ativo, não se exigindo do agente nenhuma característica específica. Por sua vez, vítima será a mulher que tenha sua saúde mental atingida, considerando-se tanto a mulher biológica quanto a transgênero, independentemente de cirurgia de redesignação sexual.
É crime de ação penal pública incondicionada de menor potencial ofensivo em razão da pena máxima em abstrato não ultrapassar dois anos, admitindo os benefícios da Lei 9.099/1995, com a observação de que o artigo 41 da Lei 11.340/06 [5] e a Súmula 536 do STJ [6] vedam a aplicação de tais benefícios quando o crime for cometido no contexto de violência doméstica contra a mulher.
[1] “Artigo 12-C, Lei nº 11.340/06 – Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física ou psicológica da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida: I – pela autoridade judicial; II – pelo delegado de polícia, quando o município não for sede de comarca e; III – pelo policial, quando o município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia”.
[2] “Artigo 129, §13º, CP – Se a lesão for praticada contra a mulher, por razões da condição do sexo feminino, nos termos do § 2º-A do artigo 121 deste Código. Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos”.
[3] “Artigo 7º, II, Lei nº 11.340/06 – São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação”.
[4] “Artigo 147-A, CP – Perseguir alguém, reiteradamente ou por qualquer outro meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade. Pena – reclusão de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa”.
[5] “Artigo 41, Lei nº 11.340/06 – Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a L. nº 9.099/95”.
[6] Súmula 536, STJ. A suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha.
Fonte: Conjur (11/08/21)