ATUALIZAÇÃO DO CÓDIGO CIVIL E PROPOSTAS DE SEGURANÇA JURÍDICA

Por Rosa Maria Nery

O projeto de lei 4/2025, que propõe a atualização do Código Civil de 2002, tem gerado críticas contundentes. No entanto, algumas reações —ainda que bem-intencionadas— partem de leituras apressadas ou distorcidas, e por isso merecem esclarecimentos.

Entre as mudanças mais debatidas está a reforma da parte contratual. A comissão de juristas responsável pelo anteprojeto propôs um critério de distinção entre contratos civis, empresariais, de consumo e trabalhistas. Essa diferenciação, formulada pela relatoria-geral da comissão, responde a uma inquietação antiga da doutrina. Já em 1927, Lacerda de Almeida criticava o Código Civil de 1916 por não distinguir adequadamente os contratos civis dos comerciais. A proposta da comissão resgata esse debate, hoje ainda mais necessário diante da complexidade das relações jurídicas contemporâneas.

A distinção entre regimes contratuais visa justamente enfrentar a multiplicidade de contextos em que os contratos são celebrados. O objetivo é conferir maior clareza e segurança jurídica quanto à aplicação do regime jurídico —seja ele de direito civil, empresarial, do consumidor ou do trabalho— conforme a natureza da relação. Em vez de inovar arbitrariamente, a proposta busca consolidar entendimentos já presentes na legislação e na jurisprudência. A ideia de simetria entre contratantes, por exemplo, está prevista na Lei da Liberdade Econômica (lei 13.874/2019) e no próprio Código Civil.

Não é verdade que o projeto cria categorias contratuais novas ou confusas. A comissão apenas reconhece, com base técnica, que diferentes relações contratuais demandam diferentes intervenções normativas. Contratos empresariais, com partes presumivelmente simétricas, não exigem o mesmo nível de proteção legal conferido aos contratos de consumo ou de trabalho, em que há vulnerabilidade estrutural.

Outro ponto criticado diz respeito ao uso das chamadas “máximas de experiência” no sistema de responsabilidade civil. O conceito, longe de ser vago, tem sólida tradição doutrinária. Surge na Alemanha com Friedrich Stein, foi amplamente desenvolvido por autores como Gennaro Pistolese e Volker Lipp e, no Brasil, tem respaldo na obra de Barbosa Moreira. As máximas de experiência são usadas para avaliar condutas à luz do que é razoável ou previsível em contextos concretos —uma prática já incorporada à jurisprudência brasileira.

Muito se falou também sobre o suposto excesso de alterações legislativas. A cifra citada —mais de mil artigos— impressiona, mas precisa ser contextualizada: cerca de 300 dispositivos pertencem a um novo livro, inexistente no Código atual; dezenas de artigos foram alterados apenas para promover ajustes redacionais ou de técnica legislativa; e outros tantos visam à inclusão de figuras jurídicas já consolidadas na prática forense, como a cessão da posição contratual.

A crítica ao uso de conceitos abertos ou cláusulas gerais tampouco se sustenta. O Código Civil em vigor já emprega largamente expressões como “boa-fé”, “função social”, “interesse do menor” ou mesmo “outra origem”, como no artigo 1.593, que trata do parentesco. Esses conceitos são necessários para garantir a adaptabilidade do sistema jurídico às transformações sociais, e sua interpretação deve ocorrer em diálogo com os princípios constitucionais e os precedentes judiciais.

Se há dúvidas sobre a capacidade dos operadores do direito de lidar com essas categorias jurídicas, talvez o debate deva ser redirecionado. A crítica não seria ao conteúdo do PLS 4/2025, mas à articulação entre o direito civil e o direito processual, especialmente após a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, que ampliou o papel dos tribunais na conformação do ordenamento jurídico. Em um sistema de precedentes, conceitos abertos são essenciais para a construção jurisprudencial e para a evolução do direito.

A comissão permanece à disposição do Parlamento e da sociedade civil para discutir cada proposta com profundidade, espírito público e compromisso com o aprimoramento da legislação. O que se espera é um debate qualificado, à altura da importância do Código Civil para a vida em sociedade.

Fonte: Folha de São Paulo

 

 

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