CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM): NOVAS NORMAS ÉTICAS SOBRE REPRODUÇÃO HUMANA. O QUE MUDOU?
O cenário reclama legislação a respeito do tema, o que, por certo, não coibirá conflitos, porém proporcionará a segurança jurídica que o tema merece.
Por Ana Claudia Brandão de Barros Correia Ferraz [1], Presidente da Comissão Nacional de Biodireito e Bioética da ADFAS, originalmente publicado no Migalhas.
Recentemente, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou nova resolução que disciplina as normas éticas que regulam a utilização das técnicas de reprodução assistida (RA) no Brasil. A resolução 2.294/21 trouxe algumas alterações relevantes em relação a de nº 2.168/17, anteriormente em vigor.
O papel principal da utilização das técnicas de RA consiste em auxiliar no processo de procriação humana, podendo ser utilizadas para doação de ovócitos, preservação de gametas, embriões e tecidos germinativos, desde que exista possibilidade de sucesso e baixa probabilidade de risco grave tanto para a paciente quanto para o possível descendente. Entretanto, embora se trate de norma deontológica, não se pode desconsiderar a repercussão da regulamentação ética do Conselho Federal de Medicina no campo do direito ao planejamento familiar em face da ausência de lei brasileira sobre a matéria, disciplinada pelo referido conselho desde 1992.
Dentre as principais alterações trazidas pela nova resolução podemos citar a alteração etária para doação de gametas, a delimitação do número de embriões gerados em laboratório e a transferência de embriões, a necessidade de autorização judicial para o descarte de embriões, a necessidade da cedente do útero, na gestação de substituição, possuir pelo menos um filho biológico vivo; a responsabilidade dos usuários pelos gametas, no caso de utilização de bancos de gametas ou embriões.
A Resolução CFM 2.294/21, no que tange à idade para doação, reduziu-a para até 37 anos, em caso de mulheres e, 45 anos, no caso de homens, ressalvando os casos em que os embriões já estejam congelados, desde que esclarecidos os pacientes quanto aos riscos dos procedimentos, em corolário à necessidade do consentimento livre e informado na relação médico-paciente. Tal modificação deu-se em razão de estudos científicos quanto à qualidade dos gametas com o avanço da idade, visando evitar danos aos usuários das técnicas e a sua futura prole, em consonância com os princípios bioéticos da beneficência e não-maleficência. Outrossim, a nova norma estabelece que a responsabilidade pela seleção de doadores é exclusiva dos usuários, quando da utilização de banco de gametas ou embriões, reafirmando a natureza de obrigação de meio dos serviços médicos prestados pelas clínicas de reprodução assistida.
Em relação à gestação de substituição a nova regulamentação manteve a necessidade do parentesco consanguíneo até o quarto grau entre os envolvidos, acrescentando a exigência de que a cedente do útero tenha, pelo menos, um filho biológico vivo. Persiste, porém, a possibilidade de análise pelos respectivos conselhos regionais, de situações, por exemplo, em que não haja possível cedente na família com tal grau de parentesco. O objetivo é evitar conflitos de maternidade, que podem surgir da gestação para outrem, responsável por afastar antigo preceito jurídico de que “a maternidade é sempre certa”. É preciso pontuar que esta questão segue polêmica em todo mundo, a exemplo do que aconteceu na Índia, em 2019, país antes conhecido mundialmente pelo turismo procriativo, com vários pactos onerosos de cessão de útero, cuja nova legislação coibiu a onerosidade e trouxe várias restrições a esse tipo de acordo, limitando-a a pessoas casadas há mais de 05 anos, sem filhos, e desde que com pessoas da família.
Vale lembrar que a nova resolução mantém a possibilidade de doação compartilhada, a qual pode envolver onerosidade, diante do compartilhamento de material biológico e de custos financeiros. Tal regramento não foi considerado antiético pelo CFM, a despeito de a Constituição Federal de 1988 e da lei 9.434/97 vedarem qualquer tipo de comercialização de células, tecidos e órgãos humanos, inclusive de gametas.
Em adição, ressalte-se que no ordenamento jurídico brasileiro inexiste norma acerca de presunção de maternidade nesses casos, já que o art. 1597 do Código Civil foi omisso quanto ao tema. De outro turno, a validade de pactos de cessão de útero é questionável, embora chancelados pelo Conselho Nacional de Justiça, através do Provimento 63/17. Segunda tal norma as pessoas nascidas através da utilização das técnicas de reprodução humana assistida podem, mediante apresentação de documentação nela elencada, firmada perante as clínicas, procurar diretamente os serviços extrajudiciais, para efetivação do registro de nascimento, sem necessidade de apreciação pelo Poder Judiciário.
Outra novidade diz respeito ao número de embriões que podem ser criados e transferidos em cada procedimento e ao destino dos mesmos. A nova resolução limita a transferência de, no máximo, 02 (dois) embriões, para mulheres até 37 (trinta e sete) anos e, acima desta idade, 03 (três) embriões no intuito de diminuir os riscos da gravidez múltipla. Já o número total de embriões gerados em laboratórios não pode exceder a 8 (oito). Os envolvidos devem deixar por escrito manifestação sobre a destinação dos mesmos em casos de dissolução de união estável, divórcio e morte, sendo a doação uma opção possível.
A lei 11.105/05 (Lei de Biossegurança), em seu art. 5º, (dispositivo legal julgado constitucional pelo STF, por maioria apertada, na ADIn 3510) permitiu a utilização de embriões inviáveis e congelados há mais de três anos para pesquisas com células-tronco, com a concordância dos pacientes. A resolução anterior estabelecia que “os embriões criopreservados com três anos ou mais poderiam ser descartados se esta fosse a vontade expressa dos pacientes. Note-se que não se exigia o requisito da “inviabilidade”. O descarte era possível desde que houvesse autorização expressa, ou ainda, dos embriões considerados abandonados, aqueles cujos responsáveis não foram localizados ou que os contratos fossem descumpridos.
A nova resolução manteve este prazo e a possibilidade de descarte de embriões viáveis, porém incluiu a necessidade de autorização judicial. Trata-se de um avanço no sentido de desestimular a criopreservação de embriões e o seu consequente descarte, caminho natural quando são gerados embriões supranumerários. Nesse contexto, o artigo 15 do Código de Ética Médica já estabelecia que a fertilização realizada a partir de técnicas de reprodução assistida não deve gerar sistematicamente embriões supranumerários. No Brasil, segundo dados da ANVISA, disponíveis no 31º Relatório do Sistema Nacional de Produção de Embriões (SisEmbrio) apenas em 2020, foram congelados mais de 100 (cem) mil embriões no país (100.380) e doados para pesquisa apenas 22 (vinte e dois) o que demonstra a necessidade urgente de legislação a respeito do tema. Ademais, não se pode olvidar a indefinição que persiste no Direito Brasileiro, quanto à natureza jurídica dos embriões humanos.
Impende destacar a regra de que todas as pessoas capazes podem ser contempladas pelas técnicas de reprodução assistida, deixando expressa a possibilidade de utilização por homoafetivos e transgêneros. Pontua-se, neste tópico, a proibição de mistura de espermatozoides, devendo o óvulo ou grupo de óvulos ser fecundado com o espermatozoide de um único parceiro, para que se possa saber que material genético deu origem ao embrião a ser implantado, garantindo-se o direito à origem genética dos filhos oriundos do procedimento.
Outrossim, aponta-se a manutenção da regra do anonimato do doador que prevalece desde a primeira resolução sobre a matéria, ressalvando-se, porém, a possibilidade de doação de gametas para parentesco de até quarto grau de um dos receptores, desde que não incorra em consanguinidade.
É necessário mencionar a regra contida no citado provimento nº 63/2017, do Conselho Nacional de Justiça acerca do reconhecimento do direito à ascendência biológica, como direito da personalidade, tendência nas legislações internacionais que tratam de reprodução assistida, sem que implique relação de parentesco, o que colide frontalmente com a regra do segredo absoluto há muito consagrada pelo Conselho Federal de Medicina.
Por fim, não é demasiado recordar que se tratam de normas éticas, que não são hábeis a solucionar eventuais conflitos jurídicos envolvendo direitos tão caros como são os direitos da personalidade e relativos ao parentesco. O cenário reclama legislação a respeito do tema, o que, por certo, não coibirá conflitos, porém proporcionará a segurança jurídica que o tema merece.
[1] Juíza de Direito do TJ/PE. Pós- Doutora pela Universidade de Salamanca, Espanha. Presidente da Comissão Nacional de Biodireito e Bioética da ADFAS. Membro do Comité de Bioética Real Hospital Português/UNESCO.
Publicado em 23 de junho de 2021.