insegurança jurídica – ADFAS :: Associação de Direito de Família e das Sucessões https://adfas.org.br Associação de Direito de Família e das Sucessões Thu, 23 Mar 2017 17:40:30 +0000 pt-BR hourly 1 https://adfas.org.br/wp-content/uploads/2017/06/cropped-cropped-download.png insegurança jurídica – ADFAS :: Associação de Direito de Família e das Sucessões https://adfas.org.br 32 32 A subversão do direito brasileiro https://adfas.org.br/a-subversao-do-direito-brasileiro/ Thu, 23 Mar 2017 17:40:30 +0000 https://adfas.org.br/?p=394 No meu artigo da semana passada, discorri sobre a ruína do Direito de Família que está sendo provocada pela supervalorização do afeto. Dia após dia, a preocupação aumenta. Avolumam-se no Poder Judiciário ações embasadas em suposta doutrina do afeto. Utilizo mais uma vez como ilustração nítida disso o tema de repercussão geral que está em […]]]>

No meu artigo da semana passada, discorri sobre a ruína do Direito de Família que está sendo provocada pela supervalorização do afeto. Dia após dia, a preocupação aumenta. Avolumam-se no Poder Judiciário ações embasadas em suposta doutrina do afeto.
Utilizo mais uma vez como ilustração nítida disso o tema de repercussão geral que está em pauta no STF sobre o regime sucessório da união estável (previsto no artigo 1.790 do Código Civil), cuja segunda parte do julgamento está marcada para o próximo dia 30 de abril, e no qual, a ADFAS – Associação de Direito de Família e das Sucessões, representada pelo Professor Ives Gandra da Silva Martins, seu Conselheiro Científico, e por mim, como sua Presidente, atua como amicus curiae.
A questão constitucional chegou ao STF a partir de um caso concreto em que uma companheira viúva não se conforma em ver os bens particulares do falecido (bens adquiridos antes do início da união, adquiridos por herança durante a união e por doação) passados aos irmãos deste, muito embora herde os bens que seu companheiro adquiriu onerosamente (por compra ou por rendimentos de aplicações, por exemplo) durante a união estável.
Não se conforma, em resumo, com o artigo 1.790 do Código Civil, que prevê as regras sucessórias da união estável. O desejo da mulher é de que os irmãos do falecido sejam completamente excluídos da sucessão e a integralidade da herança lhe seja conferida.
O STF foi chamado a decidir um caso bem específico e uma questão constitucional mais específica ainda: é válida a disposição do Código Civil pela qual parentes colaterais (irmãos, no caso) afastam o companheiro sobrevivente na herança dos bens particulares do falecido?
O Tribunal, entretanto, em mais um movimento que já se tornou perigosamente rotineiro, ultrapassou – e muito – os limites da controvérsia levantada no caso sob análise, e, de modo indevido, elevou e transfigurou a discussão que seria somente sobre uma regra pontual do Código Civil, em uma discussão sobre todo o regime sucessório das uniões estáveis no Brasil e sobre a validade de suas diferenças para com o regime sucessório do casamento.
A isso é que em termos jurídicos se dá o nome de julgamento extra petita, um julgamento exorbitante dos limites da causa, em que o juiz ou Tribunal examina questões e toma decisões sem pertinência imediata com a controvérsia suscitada. Julgamentos extra petita são categoricamente vedados pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Para entender melhor o que fez o STF, imagine um juiz que obrigasse, além do acusado, também os seus pais, seus avós, tios e irmãos a sentarem no banco dos réus. E o pior é que esse juiz está em vias de condenar a família inteira.
O STF já exorbitou seus poderes ao ampliar sobremaneira o objeto do julgamento. Mas irá exorbitá-lo muito mais se declarar a inconstitucionalidade do regime sucessório diferenciado da união estável.
Na nossa democracia existe um princípio fundamental, que norteia todo o ordenamento jurídico e as relações entre os poderes: a presunção de constitucionalidade das leis. A Constituição Federal é nossa lei maior, e nenhuma outra lei pode afrontá-la ou será nula, sem efeitos. Entretanto, caberá sempre a quem alega a inconstitucionalidade de uma lei o ônus de demonstrar de forma inequívoca e irrefutável que a norma legal é, de fato, manifestamente inconstitucional. Do contrário, prevalece a constitucionalidade da lei, cuja aplicação nem mesmo o Supremo Tribunal Federal pode rejeitar.
Caberia, então, aos que alegam a inconstitucionalidade total do artigo 1.790 do Código Civil demonstrar que o artigo é mesmo inconstitucional. Mas em que se fundamentam?
Principalmente no artigo 226, § 3º, da Constituição que estabelece: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.
As alegações de que este dispositivo igualou em absoluto a união estável e seus efeitos aos do casamento de maneira a tornar inconstitucional qualquer lei que regule os dois institutos de forma diferente são desprovidas de fundamento.
A verdade é que este mandamento constitucional não suporta a declaração de inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil. Porque “equiparar” não é o mesmo que “equalizar”. Esse dispositivo constitucional não iguala a união estável ao casamento. Se o fizesse, incorreria em um erro não apenas jurídico, mas também lógico, pois, se a união estável, em todos os seus efeitos, fosse equalizada ao casamento, sequer haveria necessidade de prever os dois institutos jurídicos, muito menos prever a conversão de um para o outro. Como se converte algo no seu exato igual?
Casamento e união estável constituem família e contam com a proteção equânime do Estado, que não pode, em seus benefícios destinados à preservação da família (programas assistenciais, leis previdenciárias, etc.) discriminar entre a família oriunda do casamento e a oriunda da união estável. Mas casamento e união estável não têm os mesmos efeitos sucessórios. E é este o sentido e alcance do artigo 226, § 3º, da Constituição.
Portanto, no estabelecimento de efeitos sucessórios diversos entre o casamento e a união estável, não há também violação ao princípio da igualdade, como também afirmam alguns. Ocorre exatamente o contrário. O que há é a preservação da igualdade, porque este princípio traduz-se in concreto em tratar de maneira diversa duas situações que são de fato diversas. No caso, consiste em atribuir efeitos sucessórios diversos ao casamento e à união estável, em razão da diferença de natureza de cada uma dessas entidades familiares, em termos de constituição e desconstituição.
A não-equiparação de efeitos jurídicos entre a união estável e o casamento também se justifica, e isto é crucial, pelo direito fundamental das pessoas à liberdade. Se as escolhas dos indivíduos são lícitas, não prejudicam a ordem pública ou os direitos de outros, a lei deve respeitar essas escolhas. O direito daqueles que desejam constituir família, mas não desejam se submeter aos rígidos e complicados efeitos sucessórios do casamento, deve ser, portanto, respeitado.
É possível entender agora por que o STF exorbitará tanto a sua competência se declarar a inconstitucionalidade do regime sucessório vigente na união estável. O princípio elementar de constitucionalidade das leis afirma que um juiz ou Tribunal, mesmo o mais alto de nosso país, só pode declarar inconstitucional as leis que explícita e flagrantemente de fato o sejam. Como demonstrei, o artigo 1.790 não está nem de longe nesta categoria de leis. O dispositivo não apenas não afronta, como verdadeiramente realiza os preceitos constitucionais sobre a matéria.
Essa é uma das razões principais pela qual tenho voltado frequentemente a este assunto. Suas consequências menos evidentes, mas nem por isso menos desastrosas, vão muito além dos que vivem em união estável no Brasil ou dos que pretendem constituí-la, o que por si só já é um número expressivo.
O julgamento que será retomado na semana que vem (30/03) impacta em todos os brasileiros, porque, se não for alterada a maioria provisória da primeira parte do julgamento ocorrido em 31/08 do ano passado, no sentido da inconstitucionalidade do regime sucessório diferenciado da união estável, o STF irá declarar nulo, o que na prática significa revogar, sem fundamento e autoridade para tanto, um dispositivo legal devidamente votado e aprovado pelo poder legislativo, causando desordem nas competências próprias das esferas de poderes no Brasil.
*Regina Beatriz Tavares da Silva é Presidente da ADFAS (Associação de Direito de Família e das Sucessões). Doutora em Direito pela USP e advogada.

]]>