SUPREMA CORTE DO ALABAMA (EUA) ENTENDE QUE O EMBRIÃO CONGELADO DEVE SER TRATADO COMO PESSOA

Por Ana Cláudia Brandão [1], Presidente da Comissão Nacional de Biodireito e Bioética da ADFAS, originalmente publicado na Folha de Pernambuco 

Desde o nascimento da primeira bebê de proveta, Louise Brown, em 1978, verifica um crescimento acelerado pelas técnicas de reprodução humana assistida. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), uma em cada seis pessoas no mundo tem problema de fertilidade. Para além disso, o reconhecimento de uniões como entidade familiar, com as homoafetivas, tem impactado na procura por esses recursos da medicina, apesar do seu elevado custo.

Segundo dados do SisEmbrio, no Brasil existem, atualmente, quase 400.000 (quatrocentos mil) embriões congelados. Daí vem a indagação: o que fazer com esses embriões? Apesar desse alto número, ainda não há legislação específica sobre reprodução humana assistida. O Conselho Federal de Medicina edita normas éticas desde 1992, aplicáveis aos profissionais da área, das quais muitos juristas vêm se socorrendo para solucionar demandas que têm chegado aos tribunais brasileiros, diante da ausência de normativo jurídico próprio.

A Resolução nº 2320/2022 do Conselho Federal de Medicina, que trata da matéria estabelece que cabe aos pacientes deixarem registrado o destino que deve ser dado aos embriões excedentários, que não são utilizados nos procedimentos. O Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da ADI 3510, entendeu que os embriões congelados há mais de 3 (três) anos nas clínicas brasileiras ou os inviáveis poderiam ser doados para pesquisas com célula-tronco. O julgamento emblemático teve placar apertado: 6 x 5 tendo o relator à época, Ministro Ayres Brito, dito que o embrião é um “bem”.

O tema é delicado porque antes mesmo de definir a natureza jurídica do embrião é necessário perpassar pelo debate sobre o início da vida humana, que é complexo e multifacetado, envolvendo considerações científicas, éticas e religiosas. Diferentes correntes de pensamento abordam essa questão sob diversas perspectivas, refletindo uma ampla gama de crenças e valores.

Uma das correntes mais proeminentes é aquela que defende o conceito de que a vida humana começa no momento da concepção, ou seja, quando o óvulo é fertilizado pelo espermatozoide. Essa visão sustenta que o embrião é uma forma de vida humana única e inviolável, digna de proteção desde o seu surgimento.

Por outro lado, existem correntes que consideram o início da vida humana em estágios posteriores do desenvolvimento fetal, como a viabilidade fora do útero materno ou o nascimento. Essas perspectivas tendem a enfatizar marcos biológicos ou eventos específicos, como a capacidade de sobreviver de forma independente ou a passagem pelo canal de parto, como determinantes do início da vida.

Além disso, há correntes que adotam uma abordagem mais flexível e contextualizada, reconhecendo a complexidade do processo de desenvolvimento humano e a interconexão entre diversos fatores biológicos, sociais e culturais. Essas perspectivas tendem a enfatizar a importância de considerar cada situação individualmente e ponderar os diferentes valores e interesses envolvidos.

Na bioética contemporânea, a sacralidade da vida humana é um princípio fundamental que influencia e orienta muitas das discussões éticas e morais relacionadas à medicina, pesquisa biomédica e tecnologias reprodutivas. Este princípio reconhece a dignidade intrínseca e o valor único de cada vida humana, independentemente de suas circunstâncias, estágio de desenvolvimento ou capacidades.

A ideia da sacralidade da vida humana tem suas raízes em diversas tradições religiosas e filosóficas, mas também é defendida por muitos pensadores seculares. Em sua essência, ela destaca a importância de respeitar e proteger a vida humana em todas as suas manifestações, desde o momento da concepção até a morte natural.

Esse princípio implica uma série de responsabilidades éticas para profissionais da saúde, pesquisadores e legisladores e requer uma abordagem cautelosa e reflexiva em relação a questões controversas sendo fundamental buscar soluções que protejam os direitos e a dignidade de todos os membros da sociedade, especialmente os mais vulneráveis.

No âmbito jurídico, as diferentes correntes de pensamento sobre o início da vida humana também influenciam a elaboração de leis e políticas relacionadas à reprodução assistida, contracepção, aborto e outras questões éticas e de direitos humanos.

No direito brasileiro, a natureza jurídica do embrião é uma questão complexa que tem sido debatida sob diferentes perspectivas. Historicamente, tem sido considerado como coisa, pessoa em formação ou sujeito de direitos, dependendo do contexto legal e das discussões jurídicas em curso.

Inicialmente, o embrião era frequentemente tratado como uma coisa, sujeita às regras de propriedade e posse, sem reconhecimento de personalidade jurídica. No entanto, com o avanço da tecnologia de reprodução assistida e o surgimento de questões éticas e morais associadas à manipulação e utilização de embriões, o debate sobre sua natureza jurídica se intensificou.

Nos Tribunais brasileiros tem surgido decisões que tratam o embrião como coisa fora do comércio, já que no Brasil não é permitida a comercialização de células e tecidos humanos.

Porém, atualmente, há uma tendência crescente em considerar o embrião como um sujeito de direitos, especialmente no contexto da proteção da vida humana desde a concepção. Essa visão reconhece a dignidade e os interesses do embrião, embora ainda existam controvérsias sobre a extensão dos direitos a ele atribuídos, assim como relacionadas a sua criação, utilização e destino.

A natureza jurídica do embrião congelado é uma questão complexa que tem sido objeto de debates intensos em muitos sistemas legais ao redor do mundo.

Nos Estados Unidos, a Suprema Corte do Alabama foi chamada a pronunciar-se sobre este assunto delicado, lançando luz sobre os direitos e estatuto legal desses embriões congelados. Casais que tinham embriões congelados foram surpreendidos com a destruição dos mesmos por manipulação inadequada. Acionaram a justiça enquadrando a conduta como homicídio. A tese foi recusada. Ao chegar à Suprema Corte, esta entendeu que embriões humanos deveriam ser tratados como “crianças”. O maior hospital do Estado interrompeu seus os procedimentos de fertilização in vitro (FIV), após decisão, por receio de que pudesse ser submetido a processos criminais. O departamento de saúde da Universidade do Alabama, em Birmingham, disse que continuaria coletando óvulos, mas informou que interromperia a etapa seguinte do processo de fertilização in vitro, na qual os óvulos são fertilizados com espermatozoides antes de serem implantados no útero. A Associação Médica do Estado do Alabama afirmou em comunicado: “A importância desta decisão afeta todas as pessoas do Alabama, e provavelmente vai levar a menos bebês — filhos, netos, sobrinhas, sobrinhos e primos —, à medida que as opções de fertilidade se tornam limitadas para aqueles que desejam ter uma família.”

Em sua decisão histórica, a Suprema Corte do Alabama abordou uma série de considerações fundamentais, incluindo a própria definição de embrião e sua posição dentro do espectro dos direitos individuais e da proteção legal. O tribunal reconheceu que os embriões são formas de vida em estágio inicial e, como tal, levantaram questões éticas, morais e legais significativas.

No centro do debate estava a questão de como equilibrar os interesses das partes envolvidas: os doadores dos gametas, que muitas vezes têm expectativas e desejos divergentes em relação ao destino dos embriões, e os próprios embriões, que são incapazes de expressar sua vontade.

A Suprema Corte do Alabama, ao ponderar esses interesses conflitantes, considerou uma série de fatores, incluindo acordos prévios entre os doadores, pacientes, as circunstâncias em que os embriões foram criados e a melhor forma de proteger os interesses dos embriões, mesmo quando isso implicasse desapontamento para os envolvidos. Essa decisão reflete um reconhecimento da complexidade e sensibilidade dessa questão e destaca a necessidade de uma abordagem equilibrada que leve em consideração os interesses de todas as partes envolvidas, enquanto também reconhece a importância de garantir proteção legal aos embriões em estágio inicial de desenvolvimento.

O embate entre essas diversas correntes reflete-se em debates legislativos e disputas judiciais, evidenciando a complexidade e a sensibilidade dessa questão fundamental para a sociedade. O embrião pode ser livremente descartado? Pode ser doado e implantado pelos donatários? Deve-se reservar quinhão hereditário do embrião congelado em caso de morte? Quem pode implantar o embrião em caso de disputa entre ex cônjuges? A vida do embrião congelado envolve questões jurídicas e morais complexas, incluindo direitos de propriedade, consentimento informado e responsabilidade parental. Decisões sobre o que fazer com esses embriões podem ser angustiantes para os pacientes envolvidos, que podem enfrentar escolhas difíceis, como doação para pesquisa, descarte seguro ou manutenção indefinida do congelamento.

Portanto, é inegável a existência de vida humana no embrião congelado, porém é necessário definir a proteção jurídica que lhe será dada: embrião, nascituro e nascido merecem a mesma proteção legal?

O tema requer uma abordagem cuidadosa e compassiva para lidar com questões de reprodução assistida e ética médica. É importante que políticas e regulamentações sejam desenvolvidas para abordar essas questões de forma sensível, respeitando os interesses e valores de todas as partes envolvidas e garantindo que a vida humana seja verdadeiramente reverenciada e protegida.


[1] Pós-Doutora pela Universidade de Salamanca, Espanha. Doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora de Direito Civil da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Juíza de Direito do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Vice-presidente da Seção Estadual de Pernambuco da ADFAS. Membro da Comissão de Biodireito e Bioética da ADFAS.


Publicado em 5 de março de 2024.

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