PAI QUE ABANDONA O FILHO TEM DIREITO À SUA HERANÇA?
Por Regina Beatriz Tavares da Silva*
O abandono do pai pode gerar várias consequências e punições na órbita jurídica, desde a tipificação como crime (Código Penal, art. 133), até a sua condenação no pagamento de indenização pelos danos morais e materiais causados ao filho (Código Civil, art. 186).
O assunto deste artigo refere-se ao abandono no Direito Sucessório, ou seja, ao direito à herança do pai que abandona o filho.
Há certos familiares aos quais a herança, ou uma parte dela, é assegurada pela lei. Esses herdeiros chamam-se necessários e parte da herança que deve a eles ser reservada denomina-se legítima. A legítima equivale à metade do patrimônio de quem tem herdeiros necessários.
Assim, os herdeiros necessários são aqueles para quem o indivíduo que morreu deverá deixar, obrigatoriamente, metade do patrimônio (legítima), de tal forma que apenas a outra metade (cota disponível) poderá ser disposta em testamento.
Em seu art. 1.845, o Código Civil estabelece como herdeiros necessários os descendentes (por exemplo, filhos e netos), ascendentes (como os pais e avós) e o cônjuge.
Apesar de todas as proteções que a lei oferece, o herdeiro necessário pode ser excluído da herança, o que pode ocorrer por meio da indignidade ou da deserdação.
A indignidade, que é declarada por meio de ação ajuizada após a morte do autor da herança (aquele que faleceu com patrimônio) por qualquer interessado na sucessão ou pelo Ministério Público, tem suas hipóteses previstas no art. 1.814 do Código Civil: participação em tentativa ou homicídio doloso contra o autor da herança ou contra seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente; calúnia em juízo ou crime contra a honra em face do falecido; violência ou meios fraudulentos que impeçam o autor da herança de dispor livremente de seus bens.
Além das razões acima, o Código Civil ainda prevê a possibilidade de deserdação, consistente na vontade manifestada pelo próprio autor da herança em testamento no sentido de excluir da sucessão alguns ou algum de seus herdeiros necessários.
A deserdação pode ocorrer quando verificada uma das causas acima referidas de indignidade e também por ofensa física, injúria grave, relações sexuais do herdeiro com o cônjuge ou o companheiro do falecido, assim como o desamparo do autor da herança que tenha deficiência mental ou grave enfermidade, como estabelecem os artigos 1.962 e 1.963 do Código Civil.
Como se vê, o desamparo ou abandono quando o autor da herança não é portador de deficiência mental ou enfermidade grave não está incluído na relação de causas da indignidade ou da deserdação.
A ordem natural é de que os pais faleçam antes dos filhos. Mas imaginemos a seguinte situação inversa.
José, que fora abandonado por seu pai, quando ainda era criança, foi criado por sua mãe, que faleceu quando ele ainda era jovem, e por seu tio materno. José, solteiro e sem filhos, morre aos cinquenta anos de idade, deixando patrimônio construído ao longo de sua vida em razão do apoio que recebeu de seu tio materno em sua formação educacional e profissional. Em testamento feito pouco antes de sua morte, José se manifestou no sentido de excluir seu pai, ainda vivo, do recebimento da herança, em razão do abandono paterno, deixando todo o seu patrimônio para o tio, que não é herdeiro necessário.
Diante desses fatos, pergunta-se: a manifestação de vontade feita por José é válida? Pode José deserdar seu pai com base na justificativa de que fora abandonado quando criança, ainda que esta hipótese não esteja prevista de forma expressa pelo Código Civil?
A esse respeito, precisamos pensar um pouco sobre qual foi o espírito da lei ao estabelecer as hipóteses de exclusão da herança.
Certamente, não haveria como o legislador prever todos os fatos graves que podem dar causa à indignidade ou à deserdação, diante da variedade de situações da vida.
Nesse sentido, perceba-se que embora o Código Civil faça menção apenas à possibilidade de deserdar pais que tenham abandonado filho deficiente ou gravemente enfermo, não se pode negar os danos emocionais e psicológicos causados pelo abandono que o pai de José praticou em relação ao filho.
Ademais, se de acordo com o art. 1.963 a injúria grave, que é ofensa à honra, pode dar ensejo à perda da herança, é preciso perceber que a honra de José foi ofendida por seu pai, ao abandoná-lo, tanto no aspecto social, como no de sua autoestima.
Inegável, portanto, que o abandono moral e material do pai gera danos à honra do filho, equiparando-se, se não suplantando em gravidade, qualquer das situações previstas expressamente no Código Civil para a indignidade e a deserdação.
Perceba-se que sob a nomenclatura do “abandono moral”, não me refiro à mera falta de afeto. Tampouco estou concordando com aqueles que colocam a afetividade acima de quaisquer regras jurídicas, elevando-a a critério máximo de decisão para todos os casos no Direito de Família e no Direito Sucessório.
Muito além da falta de afeto, de natureza subjetiva por tratar-se de sentimento, o abandono é uma situação objetiva e de possível comprovação, porque implica na violação do dever de cuidado que todos os pais devem ter para com seus filhos, de acordo com art. 229 da Constituição Federal: “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”. Trata-se de um imperativo constitucional, que se reflete na legislação infraconstitucional, conforme dispõe o Código Civil, em seu artigo 1.634, pelo qual “Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: dirigir-lhes a criação e a educação”.
Em suma, não há que se falar no dever de amar ou de ter afeto, mas no dever de cuidado, que consiste na obrigação de convívio e criação, o que é necessário à formação moral, psicológica e emocional de todas as pessoas.
Carlos Eduardo Minozzo Poletto, em excelente obra, fruto de seu mestrado, publicada no livro Indignidade sucessória e deserdação, pela Editora Saraiva, examina profundamente esse tema.
Por essa razão, embora não esteja expressamente previsto no Código Civil, é preciso melhor refletir sobre o abandono moral ou material como causa da perda do direito à herança necessária dos ascendentes.
*Regina Beatriz Tavares da Silva é Presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Doutora em Direito pela USP e advogada.
Publicação original: O Estado de São Paulo Digital – Blog do Fausto Macedo (14/03)