INSEMINAÇÃO CASEIRA: O JOIO E O TRIGO

Por Regina Beatriz Tavares da Silva, Presidente da ADFAS, originalmente publicado no Blog do Fausto Macedo – Estadão.

 

A expressão inseminação caseira gera perplexidade. Afinal, a geração de um ser humano advém da relação sexual entre um homem e uma mulher ou por meio de técnicas de reprodução medicamente assistida. O que seria, então, a inseminação caseira?

Inseminação caseira ou auto inseminação é a utilização de sêmen de um “doador” — encontrado em redes sociais ou por outra forma –, no domicílio da mulher que pretende engravidar, com sua introdução, por meio de uma seringa, no colo do seu útero. É um meio artificial reprodutivo, que não tem assistência médica e gera uma série de indagações.

O leitor já deve ter imaginado que a inseminação caseira é buscada por mulheres que não querem ou não podem arcar com os custos da reprodução medicamente assistida.

A primeira pergunta a ser feita na inseminação caseira: haveria riscos à saúde da gestante e da criança pela utilização de material genético contaminado, por exemplo pelo vírus da AIDS (Vírus da Imunodeficiência Humana – HIV)? Até mesmo o leigo pode imaginar que a resposta é sim! Por outro lado, na reprodução medicamente assistida é feita a verificação do material genético, segundo as regras do Conselho Federal de Medicina, inclusive com relatório médico atestando a saúde física e mental de todos os envolvidos (Resolução CFM 2.320/2022 IV, 2.1.).

A segunda pergunta: a inexistência de conhecimentos técnicos da mulher na introdução da seringa no seu corpo poderia levar à perfuração do colo de seu útero, com sangramentos que colocariam em risco sua vida? A resposta é sim! Na reprodução medicamente assistida obviamente há técnica na realização do procedimento por expert na área da saúde.

 

A falta de informações sobre a origem do material genético, ou seja, sobre o “doador” do sêmen, levaria à impossibilidade ou dificultaria tratamentos de saúde no ser humano assim gerado, tendo em vista que é indispensável conhecer as doenças dos ascendentes?

A resposta é sim! Quando a reprodução é medicamente assistida, o Conselho Federal de Medicina (CFM) impõe que os dados clínicos de caráter geral e as características fenotípicas sejam guardados pela clínica, para serem consultados em caso de necessidade de tratamento de saúde do ser humano assim gerado e, em situações especiais, informações completas sobre os doadores podem ser fornecidas exclusivamente aos médicos, resguardando a identidade civil do doador (Resolução CFM 2.320/2022, Capítulo IV, itens 4 e 5).

Qual seria ao destino da criança gerada por inseminação caseira? O “doador”, se quiser se identificar, poderia requerer o reconhecimento de sua paternidade, com todas as consequências, inclusive o direito de conviver com o filho. Por outro lado, caso o “doador” seja identificável, poderia ser demandado em ação judicial para o reconhecimento da filiação, com todos os efeitos da paternidade, como o dever de pagar pensão alimentícia. Conforme a norma do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no Provimento 149/2023, que repetiu os anteriores, se houver o conhecimento da ascendência biológica na reprodução medicamente assistida, isto não importará no reconhecimento do vínculo de parentesco e dos respectivos efeitos jurídicos entre o doador do sêmen e a criança (art. 513, § 3º).

Haveria, na falta de identificação do “doador”, o agravamento dos riscos de relações incestuosas involuntárias entre pessoas geradas com o mesmo material genético? O agravamento dos riscos de que dois irmãos de sangue se encontrem, se apaixonem e vivenciem uma relação de casamento ou de união estável é de evidência solar.

Neste ponto, caso real, ocorrido na Holanda e que pode ser assistido em documentário – “O Homem com 1.000 filhos” –, demonstra a imensa preocupação das mães quanto aos riscos de que seus filhos venham a se relacionar com seus irmãos, com os riscos, inclusive, de prole com deficiências graves. Na reprodução medicamente assistida o CFM tem regra que limita a utilização do sêmen de um mesmo doador: “Na região de localização da unidade, o registro dos nascimentos evitará que um(a) doador(a) tenha produzido mais de 2 (dois) nascimentos de crianças de sexos diferentes em uma área de 1 (um) milhão de habitantes.” (Resolução CFM 2.320/2022, IV, item 6).

A última indagação é a seguinte: duas mulheres deveriam ter o direito ao registro civil de nascimento da criança gerada por inseminação caseira, em razão do conceito da filiação socioafetiva, logo após o nascimento da criança?

A filiação socioafetiva tem requisitos construídos pela jurisprudência, para que haja segurança jurídica, de modo que é preciso haver a demonstração de que a parceira da mãe biológica é reconhecida pela criança como uma segunda mãe, que a sociedade vê a criança como tendo duas mães e que há afetividade entre ela e a criança, o que não poderia ser presumido pelo Cartório de Registro Civil ao receber duas mulheres com uma criança recém-nascida, solicitando o seu registro.

A norma do CNJ que possibilita esse registro da maternidade socioafetiva exige que a criança tenha completado 12 anos, para que já tenha um passado que demonstre a socioafetividade (Provimento CNJ 149/2023, art. 505). A maternidade socioafetiva deve ser estável e exteriorizada socialmente, de modo que o oficial do Cartório do Registro Civil deverá apurar e atestar a existência do vínculo mediante a verificação de elementos concretos, tais como apontamento escolar como responsável ou representante do aluno, inscrição do pretenso filho em plano de saúde ou em órgão de previdência, registro oficial de que residem na mesma unidade domiciliar, vínculo de conjugalidade — casamento ou união estável — com a mãe biológica, inscrição como dependente em entidades associativas, fotografias em celebrações relevantes, declaração de testemunhas com firma reconhecida etc.

Por isto, o CNJ, neste mês de outubro de 2024, julgou improcedente pedido de providências do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) sobre a inseminação caseira, em que foi requerida a possibilidade de duas mulheres registrarem no Cartório uma criança em seus nomes, como duas mães, tendo sido oriunda de inseminação caseira, logo após o seu nascimento.

Para isto pretendia-se revogar a norma do CNJ que estabelece a indispensabilidade da declaração, com firma reconhecida, do diretor técnico da clínica, centro ou serviço de reprodução humana em que foi realizada a reprodução assistida, indicando que a criança foi gerada por reprodução assistida com doação de sêmen, assim como o nome dos beneficiários (Provimento CNJ 149/2023, art. 513, II).

 

A consequência que teria essa revogação seria o registro de criança oriunda de inseminação caseira por um casal de mulheres, sem que houvesse o regular procedimento de reprodução medicamente assistida e a declaração médica com indicação dos beneficiários e sem que houvesse a demonstração da relação socioafetiva, ou seja, a possibilidade de verificação pelo Cartório de Registro Civil de que a mulher que não gerou a criança tem com ela relação como se fosse sua mãe biológica.

A Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) se manifestou a convite do CNJ, inclusive com base em laudo médico, opondo-se ao pedido de providências, tendo sido vitoriosa nos seus argumentos, que são inegáveis. A Anvisa e o CFM se manifestaram, após a manifestação da ADFAS, e foram também desfavoráveis ao pedido de providências.

No entanto, por existirem situações no plano dos fatos, em que lastimavelmente mulheres realizam inseminação caseira, mesmo com todos os riscos de autoinseminação, cabe a propositura de ação judicial para que seja provada a relação socioafetiva, antes da criança alcançar os 12 anos, perante um juiz de Direito e com a oitiva do Ministério Público.

Quando duas mães promovem uma ação judicial para que o Juiz autorize o registro de uma criança com menos do que 12 anos, é feita uma análise por meio de provas de que há a relação socioafetiva, ou seja, fica demonstrado no processo que a criança tem efetivamente duas mães. Além das provas ou dos documentos que o CNJ exige para o registro de uma criança com mais de 12 anos por duas mães, também é, via de regra, realizada perícia por psicólogo e por assistente social, assim como as partes são ouvidas pelo juiz de Direito, sendo usual também a prova testemunhal da relação socioafetiva.

Assim, embora esteja sendo divulgado que o Superior Tribunal de Justiça, em 15 de outubro deste ano, autoriza a inseminação caseira como um procedimento aceitável em nosso ordenamento jurídico, é preciso esclarecer que no REsp nº 2137415 / SP, 3ª Turma, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, foi autorizado o registro de uma criança com menos do que 12 anos por mãe não biológica, oriunda de inseminação caseira porque houve demonstração da relação socioafetiva no processo judicial. A concepção da criança foi realizada durante a união estável, ou seja, durante a convivência pública e estável das duas mulheres, tendo sido verificado pelo Poder Judiciário o melhor interesse da criança no caso.

Assim, o STJ não vai na contramão do CNJ porque no processo judicial, que estava em julgamento no STJ, houve a verificação dos requisitos da maternidade socioafetiva da parceira da mãe biológica. A situação já estava consolidada, havia duas mães que exerciam a maternidade da criança.

Por fim, deve ser salientado que no Brasil devem ser tomadas medidas urgentes pelo Poder Legislativo para coibir a inseminação caseira, a exemplo do que foi feito em Portugal, há anos, pelo Decreto-Lei 319/1986, que estabelece que a inseminação artificial apenas poder ser realizada com sêmen recolhido, analisado e conservado por instituições públicas ou privadas, com todas as garantias técnicas de evitar aqueles riscos e que tenham capacidade administrativa para satisfazer as exigências éticas e legais requeridas e ainda para tornar viável o controle da legalidade da intervenção.

Separemos o joio do trigo e não sejamos iludidos por notícias que não adentram nos meandros de tema tão relevante para a saúde humana e a segurança jurídica!

 

Fonte: Estadão
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