DEFINIÇÃO DE REGIME DE BENS EM UNIÃO ESTÁVEL POR ESCRITURA PÚBLICA NÃO RETROAGE

A união estável será regida pelo regime da comunhão parcial de bens enquanto não houver contrato escrito que diga ser ela disciplinada por regime distinto. A celebração de escritura pública que eventualmente defina esse regime não possui efeitos retroativos.
Essa foi a conclusão da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que deu provimento a recurso especial cujo efeito é permitir que as filhas de uma mulher entrem na linha de sucessão da mãe pelo patrimônio que ela construiu ao longo de 35 anos de união estável com o padrasto.
No caso, o casal iniciou relacionamento em 1980 sem qualquer formalização até 2012, quando foi lavrada uma escritura pública declarando a existência da união estável que, naquela época, mantinha-se havia aproximadamente 33 anos, sem nenhuma disposição acerca do regime de bens.
Dois anos depois e apenas três meses antes da morte da mulher, uma segunda escritura foi lavrada, desta vez indicando a separação total de bens: todos os bens, direitos, saldos, aplicações, créditos e débitos configuravam patrimônio pessoal incomunicável dos conviventes.
Por isso, as filhas da falecida ajuizaram ação de nulidade de escritura pública defendendo que a manifestação de vontade da mãe não foi livre e consciente. Justificam que ela estava em estado de saúde precário e não tinha condições de compreender os termos da declaração.
As instâncias ordinárias analisaram provas e fatos e fixaram que a mulher, pelo contrário, estava lúcida e que o problema cardíaco do qual sofria não afetava suas faculdades mentais. Essa conclusão foi mantida, pois sua revisão é vedada no STJ pela Súmula 7.
Restou definir se a escritura que definiu a separação total de bens produziria efeitos retroativos, desde 1980, ou apenas em relação aos três meses seguintes, até a morte da mulher.
Por maioria de votos, prevaleceu o voto da ministra Nancy Andrighi no sentido de que ela não retroage. Votaram com ela os ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva e Moura Ribeiro. Ficou vencido o relator, ministro Marco Aurélio Bellizze, que votou pela retroação dos efeitos.
Daqui para frente
No voto vencedor, a ministra Nancy explicou que a união estável não depende de formalização. E justamente por isso, o artigo 1.725 do Código Civil indica que, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.
“A ausência de contrato escrito convivencial não pode ser equiparada à ausência de regime de bens na união estável não formalizada, como se houvesse somente uma lacuna suscetível de ulterior declaração com eficácia retroativa”, defendeu.
Assim, ao lavrar escritura pública em 2015 definindo a separação total de bens para aquela união estável, o casal modificou esse regime, pois a união estável será regida pelo regime da comunhão parcial enquanto não houver contrato escrito que diga ser ela regida por regime distinto.
Defendeu também que o silêncio das partes sobre o tema na escritura anterior, de 2012, não pode ser entendido como uma ausência de regime de bens. “O silêncio é eloquente e se traduz na submissão das partes ao regime legal, de modo que a escritura posteriormente lavrada efetivamente modifica o regime então vigente”, concluiu.
Em voto-vista, o ministro Moura Ribeiro concordou. Afirmou que não se mostra razoável conceber a ideia de que, nos 35 anos anteriores de convivência do casal antes da escritura pública de 2015, não houve regime de bens regendo a união estável.
“No meu pensar, ele existiu, e, nos termos do art. 1.725 do CC/02, era o da comunhão parcial de bens e não se pode alterá-lo e ao mesmo tempo conferir efeitos retroativos ao regime expressamente eleito no instrumento público, sob pena de conferir à união estável disciplina distinta do casamento, para uma circunstância claramente equiparável”, afirmou.
Também em voto-vista, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva acrescentou que o efeito retroativo reclamado pelo companheiro “viola a segurança jurídica, tendo em vista a possibilidade de atingir terceiros de boa-fé que celebraram, ao longo de 35 anos, negócios jurídicos com os companheiros, o que é inadmissível”.
Formalizou-se o que já existia
Ficou vencido o ministro Marco Aurélio Bellizze, que votou por dar efeitos retroativos à declaração de comunhão total de bens feita três meses antes da morte da mulher. Para ele, o que o casal fez em 2015 foi simplesmente declarar uma situação que já existia, o que não se confunde com a modificação de um regime que nunca havia sido admitido.
Destacou que a lei não exige que a formalização de um regime de bens que seja escolhido pelo casal no início da união estável seja feita necessariamente no momento em que essa escolha é feita. É diferente do que ocorre com o pacto antenupcial, por exemplo.
Assim, considera absolutamente possível cogitar que haja, entre os companheiros, desde o início da relação, um acordo verbal de não comunicação de seus bens, sendo cada um responsável pelo seu patrimônio e por suas despesas.
“Na prática, na grande maioria desses relacionamentos, a formalização desse regime de bens faticamente já vigente entre os companheiros não se dá imediatamente ao início da convivência. Afinal, as relações convivenciais se desenvolvem, no mundo dos fatos, longe dos rigores formais, o que não pode ser utilizado como justificativa para cercear a liberdade e a autonomia dos companheiros para dispor sobre seus bens já nesse momento inicial”, explicou.
Se a lei exige que o acordo verbal seja formalizado por meio de contrato escrito e não prevê prazos, então isso pode ocorrer a qualquer momento da união estável.
“Na hipótese retratada nos presentes autos, o que se tem é uma declaração, em escritura pública, emanada por ambos os companheiros, cuja manifestação de vontade apresentou-se livre e espontânea, de que, desde sempre (desde o início da união estável), o patrimônio de cada um deles foi haurido sem a participação ou esforço do outro, em regime de separação total de bens, sem, portanto, comunicação entre eles”, disse.
“Logo, nos termos da fundamentação supra, a natureza declaratória da formalização opera efeitos ex tunc [com efeito retroativo]”, concluiu.
Fonte: Conjur (28/08/2021)

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