Associação de Direito de Família e das Sucessões

DE ROLANDINO DE PASSEGGERI À "ESCRITURA DO POLIAMOR": A ATIVIDADE NOTARIAL EM TEMPOS DIFÍCEIS

Por Bruno de Ávila Borgarelli
Defender a seriedade dessa tarefa é defender uma figura relevantíssima para o desenvolvimento do Direito. A “escritura do poliamor”, diante disso, pode ser considerada um mero acidente histórico.

Francesco Petrarca, um dos pais do humanismo, poeta italiano do século XIV responsável pelo surgimento da moderna poesia lírica e autor do famoso Cancioneiro, era filho de um notário. Leonardo da Vinci era também de uma linhagem notarial. Seu tataravô Michele fora tabelião em Vinci, lugarejo nas colinas toscanas – de onde aliás se origina a família -, e a profissão chegou até Piero, seu pai, passando pelo bisavô e pelo avô (Antonio). Segundo Walter Isaacson, autor de uma das mais completas biografias sobre o gênio, Leonardo apenas escapou do belo ofício por ter sido um filho bastardo1.

O esplendor das épocas desses dois homens – o Trecento e o Cinquecento – tinha sua razão italiana de ser: a Itália era o centro comercial do mediterrâneo, ligando os entrepostos do Oriente às rotas mercantis mais importantes da época, notadamente a da Champanha2.
Com as portas abertas ao capitalismo comercial, a classe burguesa ascendia e sentia a necessidade de embasar-se culturalmente, amalgamando, em seu projeto, a aristocracia e mostrando seu potencial através da arte. Daí o mecenato. O desenvolvimento cultural era, pois, reflexo de uma época de ascensão econômica, de uma nova mentalidade. E os negócios multiplicavam-se. Dar a eles a segurança necessária era uma imposição. Daí a enorme importância dos tabeliães3.
Nessa mesma época a função notarial já se ia conectando a um Estado diferenciado, epitomizado na ideia (provavelmente) maquiavélica de raison d’État, muito embora os antecedentes do Notário latino – “o único e verdadeiro Notário”4 – estejam já no “movimento geral de burocratização” do período pós-clássico romano5.
Colocadas, ainda que brevemente, as condições socioeconômicas e culturais, que se pode dizer sobre a teoria?
No século XIII já se consolidava o caráter científico do direito notarial, com o surgimento da Ars Notariae (iniciada com a obra de Raniero di Perugia)6. Nessa centúria o mundo conhece a figura peculiar de Rolandino de Passeggeri, professor de Bolonha, contemporâneo de Acúrsio e o grande responsável “por um aprimoramento científico dos formulários da florescente praxe notarial italiana”7, que culminou em sua obra magna: a Summa totius artis notariae, tratado que reúne conhecimento teórico e “uma viva sensibilidade prática”, conforme Paolo Grossi8. Rolandino é o maior nome da Ars Notariae, ao lado de Salatiel (ca. 1210-1280)9.
Num período áureo da cultura ocidental – e da cultura jurídica, especialmente – o brilho e a necessidade da função (e da ciência) notarial já se afiguravam evidentes. Prestigiosa desde de tempos remotos10 – pense-se nas “insinuações notariais” desde os hebreus, os gregos e os romanos11 -, pode-se dizer que a figura do notário atravessou eras, e sua conformação atual é um estágio mais avançado de um longo e nobre percurso.
O Notário, dirá no Brasil a lei 8.935/94, é o profissional do direito dotado de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial. É o agente “que exerce sua atividade com a finalidade de garantir a eficácia da lei, a segurança jurídica e a prevenção de litígios”12. Verdadeiro “braço alongado da atuação do Estado”, os notários oferecem “suporte essencial ao próprio mercado”, como explica Celso Campilongo13.
Pois nessa importante atividade destaca-se algo de singela enunciação, mas cujo significado é complexo e delicado: a chamada prudência notarial.
Para Ricardo Dip, “A eminente dignidade do notário – que é garantia das liberdades dos particulares – responde ao binômio de aptidão jurídica e da idoneidade moral e não está, pois, submetida ao fato performativo de mandatos que se apartem do que é iníquo por sua própria natureza ou ilegal segundo as disposições determinativas, porque a invenção da ‘norma do caso’ supõe sempre uma indeclinável ordem de fins, indicada em norma universal, e que nutre todo o discurso prático ou prudencial”14.
Por aí se vê que a atividade notarial não é nada vulgar já por seus princípios reitores. O aspecto prudencial desponta, e o agente, à primeira vista um formalizador da vontade jurídicas das pessoas, surge como intermediador entre o desejado – às vezes em demasia – e o possível, juridicamente.
A face privada da função notarial – um “officium civile” – traduz-se, “por um lado, na recolha e interpretação da vontade das partes, no auxílio à formação dessa vontade e, por outro lado, na adaptação desta ao ordenamento jurídico, na escolha e conselho dos meios adequados à realização dos fins pretendidos pelos interessados, na redação e conformação do próprio instrumento à lei (…)”15.
É claro que, aqui e ali, veem-se erros.
No Brasil, recentemente, assistiu-se a um problema bastante grave: a lavratura de escrituras de reconhecimento de união entre três pessoas, feitas em ofícios do estado de São Paulo.
Isso levou a um relevante embate jurídico, com um pedido de providências feito ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pela Associação de Direito de Família e Sucessões (ADFAS) para que os Tabelionatos fossem orientados a não lavrar tais “escrituras”.
Após a concessão de uma liminar nesse sentido, o procedimento caminhou até que, muito recentemente, os Conselheiros votaram em maioria a favor do pedido da ADFAS. Assim, fica explicitada a ilegalidade das uniões jurídicas poliafetivas, bem como a lavratura de escrituras que as reconheçam.
Mais do que indicar pontualmente uma vedação, o CNJ, cumprindo seu papel, recoloca com essa decisão a atividade notarial em seu prestigioso lugar. O ideal, é claro, seria nem ter chegado a tal ponto. De fato, é de se lamentar tamanha imprudência e desrespeito às instituições na lavratura dessas escrituras.
Primeiramente, é claro, porque são gritantemente ilegais, já que o país adota a monogamia. Os efeitos que a ordem jurídica empresta às uniões entre duas pessoas – nas suas hoje diversificadas composições – perfazem um complexo sistema, cuja estrutura depende de opções legislativas já tomadas, vigentes pois (pense-se na tipificação penal da bigamia, por exemplo). Esse sistema repudia a poligamia, por expressa decisão democrática. Até que venha uma mudança na Constituição e um rearranjo sistemático, vigora no Brasil a opção monogâmica.
Em segundo lugar, porque, ainda que se reconheça a liberdade do indivíduo para viver da forma que lhe aprouver, o oficial do tabelionato não pode garantir às pessoas algo que a lei mesma não garantiu. Isso é apenas uma forma cruel de enganar o cidadão e repudiar, sabe-se lá com que intenção, o ponto nevrálgico da prestação do serviço. O Tabelião, recorde-se, é o agente que controla a legalidade do ato que se pretende reduzir a documento16.
A síntese desses dois aspectos engendra certeiramente uma afirmação: a lavratura das escrituras de poligamia é um atentado, antes de tudo, à própria atividade tabelioa. E torna o problema uma questão decisivamente institucional. Sem prudência e respeito à legalidade, o serviço extrajudicial perde credibilidade. O erro de poucos prejudica a todos.
Daí ser tão relevante que a classe notarial entenda que o que se está a discutir, neste caso, não é o fato de as pessoas desejarem viver em um conjunto amoroso formado por três ou mais indivíduos, mas, isto sim, o problema da ilegalidade do ato, que não passou pelo crivo legislativo.
E como já se disse em outra ocasião17, “a prudência notarial e registral não pode incidir apenas sobre o desenvolvimento estrito do trabalho. Precisa incidir também sobre a própria organização da atividade, como ocorre no Brasil, onde (…) as classes se organizam e ajudam a alimentar o processo de fiscalização pelo Poder Judiciário. Em outros termos, a prudência notarial e registral também corresponde à participação desses agentes no planejamento dos rumos de sua atividade”.
A prudência assume realmente, como já se disse, essa face institucional, em diversos níveis, chegando mesmo à capacidade da classe de participar ativamente dos rumos de sua atividade, dialogando com os poderes instituídos e mostrando seu potencial organizativo.
Mas, quando se lavra uma escritura de “poliamor”, talvez por amor às novidades (um amor desordenado, diga-se) apenas se consegue agitar uma ordem jurídica já combalida, frágil e carente de vinculatividade.
Sim, hoje em dia as opções legislativas cedem diante de qualquer princípio tirado da cartola, e nem mesmo a Constituição sai ilesa. Como também já se afirmou antes, “o repositório de valores vai inflando como o fígado de um ganso usado para o preparo do foie gras, servido como prato principal, enquanto as regras e até mesmo os princípios da CF tornam-se o cafezinho e o licor servidos ao final, para quem quiser, e se houver tempo”18.
Fugindo das balizas do sistema jurídico, as escrituras do “poliamor”, lastreadas em substâncias como o “princípio da afetividade” (uma mescla ignóbil do sentimentalismo e do narcisismo contemporâneos) desprezam inclusive a segurança das pessoas, que “ganham” uma escritura sem obter algo de materialmente válido, do ponto de vista jurídico.
É, sem dúvida, um atentado institucional.
Se se seguir por esse caminho, um dia será razoável a crítica feita por Raimundo Correia no esplêndido e cômico soneto “O Vento e o Tabelião“. Ali, a figura do Notário aparece como um “falso amigo”, péssimo agouro, com seus “nasóculos de ouro e enorme calva”, que vem célere à casa do eu-lírico lavrar-lhe o testamento, como que trazido pela mesma lufada de vento que acabara de derrubar um vaso sobre as begônias e malvas do jardim.
Não. Não é nessa figura antipática e rude que o cidadão reconhece o Notário. Os brasileiros, hoje, veem no Tabelião o patrocínio de um serviço uniforme, escorreito, bem prestado e eficiente. E assim é porque o Notário brasileiro apresenta-se comprometido com a legalidade e prudência. Via de regra.
Conclua-se: a prudência notarial não é uma brincadeira, mero adorno com que se vai enfeitar uma profissão vista as mais das vezes como excessivamente técnica e repetitiva. A prudência notarial é da essência do ofício, preside a atividade do agente, guia-lhe os atos e direciona a função.
Defender a seriedade dessa tarefa é defender uma figura relevantíssima para o desenvolvimento do Direito. A “escritura do poliamor”, diante disso, pode ser considerada um mero acidente histórico.
Sit ei terra levis (Que a terra lhe seja leve).
____________
1 Leonardo da Vinci. trad. ao port. por André Czarnobai. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2017. p. 30-31.
2 Cf. ARRUDA, José Jobson. Nova história moderna e contemporânea. São Paulo: Edusc, 2005. Vol. 1, p. 47.
3 “Com o crescimento da economia mercantil italiana, os tabeliães cumpriam um importante papel ao legitimar acordos comerciais, vendas de terras, testamentos e elaborar outros documentos jurídicos em latim, frequentemente enfeitando o texto com referências históricas e floreios literários” (ISAACSON, Wlater. Op. cit. p. 30).
4 RODRIGUES, Pedro Nunes. Direito Notarial e Direito Registal – O novo regime jurídico do notariado privado. Coimbra: Almedina, 2005. p. 26. Cf. também SALCEDO, José Enrique Gomá. Derecho Notarial. 2.ed. Barcelona: Bosch, 2011. p. 39-40.
5 Assim explicam KÜMPEL, Vitor Frederico e FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral. São Paulo: YK, 2017. p 68-69, v. 3.
6 SÁ NOGUEIRA, Bernardo de. Tabelionato e instrumento público em Portugal – Génese e implantação (1212-1279). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2008. p. 32.
7 MORAES, Bernardo Queiroz de. Prólogo. In KÜMPEL, Vitor Frederico e FERRARI, Carla Modina. Op. cit., p.
8 A ordem jurídica medieval. trad. ao port. por Denise Rossato Agostinetti. São Paulo: Martins Fontes, 2014. p. 240.
9 SÁ NOGUEIRA, Bernardo de. Op. cit., p. 33.
10 Cf. KÜMPEL, Vitor Frederico e FERRARI, Carla Modina. Op. cit., p. 50-133, com farta indicação bibliográfica.
11 Cf. PONDÉ, Eduardo B. Origen e historia del Notariado. Buenos Aires: Depalma, 1967. p. 21 ss.
12 KÜMPEL, Vitor Frederico. A efetivação do Direito por meio da atividade tabelioa e registral. Migalhas, 07/05/2013. Disponível em: clique aqui. Acesso em 15/7/18.
13 Função social do notariado: Eficiência, confiança e imparcialidade. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 45
14 Prudência notarial. São Paulo: Quinta Editorial, 2012. p. 96.
15 RODRIGUES, Pedro Nunes. Op. cit., p. 27. [grifou-se].
16 RODRIGUES, Pedro Nunes. Op. cit., p. 45.
17 KÜMPEL, Vitor Frederico e ÁVILA BORGARELLI, Bruno de. Blockchain e a atividade notarial e registral. Migalhas, 29/08/2017. Disponível em: clique aqui. Acesso em 8/7/18.
18 ÁVILA BORGARELLI, Bruno de. Crise do Direito Civil encontra focos de resistência – parte 1, Migalhas, 23/44/18. Disponível em: clique aqui. Acesso em 10/7/18.
*Bruno de Ávila Borgarelli é doutorando em Direito Civil.
Fonte: Migalhas (28/07/2018)

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