A DISCIPLINA DAS RELAÇÕES JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO EM TEMPOS DE PANDEMIA

Por Marcel Edvar Simões*, originalmente publicado no Conjur

Parece que o jogo começa a virar a favor da boa técnica civilista no que tange à elaboração de projetos de lei no Brasil. Depois de assistirmos nos últimos anos a algumas novidades legislativas com imperfeições (direito real de laje1), insuficientes (Lei da Liberdade Econômica2) ou francamente atécnicas (Estatuto da Pessoa com Deficiência3), pela primeira vez em muito tempo verifica-se um projeto de lei que prima pela boa redação e pelo respeito às categorias da dogmática do Direito Privado4. E foi preciso apenas uma pandemia de caracteres inéditos na história da humanidade — que alguns já estão qualificando como a situação mais grave vivida no planeta desde a Segunda Guerra Mundial — para que esse retorno à boa técnica ocorresse.

Indubitavelmente, o mérito é do grupo de juristas que — em tempo recorde, conforme exigem as circunstâncias urgentes — contribuiu com o Senador Antonio Anastasia para a elaboração do Projeto de Lei do Senado 1.179 de 2020, que tem por escopo dispor sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia do Coronavírus (Covid-19). Inevitável endereçar, aqui, a questão da autoria: partindo de louvável iniciativa do Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro José Antonio Dias Toffoli, e sob a segura coordenação do Ministro Antonio Carlos Ferreira, do Superior Tribunal de Justiça e do Professor Otavio Luiz Rodrigues Jr., da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, reuniu-se notável equipe de experts nas diversas áreas do Direito a serem abordadas. O próprio Professor Otavio Luiz Rodrigues Jr. é especialista em revisão contratual, tendo notável obra publicada sobre o tema5; os Professores Paula Andrea Forgioni, Francisco Satiro e Marcelo von Adamek são três brilhantes comercialistas das Arcadas; o Professor Fernando Campos Scaff, além de eminente civilista, é uma das maiores autoridades brasileiras em Direito Agrário; os insignes Professores Rodrigo Xavier Leonardo e Rafael Peteffi da Silva lideram, juntamente com o já mencionado Professor Otavio, importantes pesquisas e iniciativas em prol do Direito Civil pátrio na Rede de Direito Civil Contemporâneo; o Professor José Manoel de Arruda Alvim Netto dispensa apresentações, estando devidamente registrado na História o seu papel em prol do processo civil brasileiro.

Todos, em conjunto com os igualmente ilustres advogados Roberta Rangel e Gabriel Nogueira Dias, colaboraram para que fosse apresentado texto a nosso ver sóbrio, objetivo, assentado em sólidas bases teóricas, necessário e, sobretudo, em harmonia com o momento atual. O que não significa afirmar que não possa recepcionar sugestões pontuais de aprimoramento.

O presente estudo se propõe a tecer algumas considerações, de modo realmente muito breve, sobre dois artigos do Projeto 1.179, a saber, o art. 9º e o art. 10, tendo em vista notícia de que a votação no Senado Federal deverá ocorrer nos próximos dias, e que referidos artigos estão sob risco de serem suprimidos6. Em um próximo texto, analisaremos com mais vagar também o art. 7º do PL.

caput do art. 9º veicula regra jurídica de forte carga social, determinando que, em virtude da pandemia da Covid-19, não se concederá liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo até 31 de dezembro de 2020 — quer se trate de locação de imóvel urbano para fins residenciais, quer se trate de locação de imóvel urbano para fins comerciais ou empresariais. Trata-se de regra transitória imprescindível para o momento, e que se coaduna com os mais elevados valores, princípios jurídicos e direitos que devem ser prestigiados em uma crise como a atual, a exemplo do direito à vida (art. 5º, caput, da Constituição Federal), do direito ao respeito à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal), do direito à moradia (art. 6º da Constituição Federal), do direito à segurança (art. 5º, caput, da Constituição Federal), do direito à saúde (art. 6º da Constituição Federal), do direito à integridade física (art. 129 e ss., e art. 268 do Código Penal; art. 13 do Código Civil) e do direito à livre iniciativa (art. 170, caput, da Constituição Federal) e ao livre exercício da atividade econômica (art. 1º, caput, da Lei n.º 13.874/2019).

Com efeito, não se pode conceber que, em meio a uma pandemia com taxa de mortalidade não desprezível, bem como com consequências graves à saúde de grande perto dos contaminados, famílias possam ser retiradas de suas moradias, ou empresas possam ser desalojadas de seus estabelecimentos, em virtude de flutuações na percepção de suas remunerações ou lucros habituais, a interferir (momentaneamente) com o cumprimento integral ou com pontualidade de sua prestação de pagamento de alugueres.

A permanência dessa regra — uma das mais importantes do projeto — no texto a ser votado pelo Senado Federal é de suma importância para a manutenção da estabilidade social em período de crise de saúde pública e instabilidade econômica, prevenindo-se convulsões sociais que efetivamente podem ser aqui evitadas. Aliás, um primeiro aspecto que comporta sugestão de aprimoramento na redação do caput do art. 9º é aquele relativo ao fato de que sua abrangência não deveria se limitar apenas à suspensão da concessão de liminares mas, igualmente, deveria englobar a suspensão da eficácia de ordens definitivas de despejo durante o período da pandemia (ainda que pareça, na prática, ser difícil visualizar casos em que estas venham a ocorrer até 31 de dezembro de 2020, em ações ajuizadas a partir de 20 de março de 2020).

O § 1º ao art. 9º estabelece limitação da regra do caput às ações ajuizadas a partir de 20 de março de 2020. Trata-se, portanto, do marco inicial para delimitação do conjunto de ações abrangidas pela norma protetiva.

Por outro lado, o § 2º ao art. 9º veicula regra que excepciona o caput de modo razoável e acertado, uma vez que permite a retomada do imóvel nas hipóteses previstas nos incisos II, III, e IV do art. 47 da Lei n.º 8.245/1991. Ora, o art. 47 da Lei do Inquilinato cuida, precisamente, de contratos caracterizados por lapso temporal menor (prazo inferior a 30 meses) e, portanto, de certa forma, por expectativa menos duradoura de permanência do estado de coisas. Além disso, as hipóteses dos incisos II a IV do art. 47 configuram fatos relevantes para a retomada do imóvel mesmo no período extraordinário da pandemia em questão. Note-se que todas as alterações aqui cogitadas em aprimoramento do art. 9º são de simples incorporação ao texto.

O art. 10 do Projeto de Lei n.º 1179 de 2020, por seu turno, estabelece uma moratória mediante requerimento para o pagamento de alugueres com vencimento de 20 de março de 2020 a 30 de outubro de 2020, nos contratos de locação de imóveis urbanos para fins residenciais, moratória esta, contudo, que não é ampla e irrestrita, mas que se restringe às hipóteses em que o locatário sofreu alteração econômico-financeira decorrente de

(i) demissão;
(ii) redução de carga horária de trabalho;
(iii) diminuição de remuneração.

Parece importante sublinhar esse ponto: a moratória estipulada está atrelada ao atendimento dos requisitos previstos (alternativamente) na hipótese normativa – logo, se não se configurar ou a situação fática de demissão, ou a de redução de carga horária ou a de diminuição de remuneração, o locatário não fará jus à suspensão do pagamento de alugueres.

O § 1º ao art. 10 especifica os termos em que se dará a moratória prevista no caput: no período de 20 de março de 2020 a 30 de outubro de 2020 os inquilinos poderão suspender, total ou parcialmente, o pagamento dos alugueres vencíveis no período, mas estes deverão ser pagos posteriormente, parceladamente, a partir de 30 de outubro de 2020, na data normal de vencimento, somando-se à prestação dos alugueres vincendos o percentual mensal de 20% dos alugueres vencidos (evidentemente, até sua integral quitação). Percebe-se, no § 1º, um equívoco redacional: ou o dia 30 de outubro de 2020 é o termo final do prazo de suspensão do pagamento dos alugueres, ou é o termo inicial de fluência do prazo para que principie o pagamento parcelado dos alugueres vencidos. Tertium non datur. Logo, o correto seria que o § 1º tivesse assinalado a data de 31 de outubro de 2020, para início do pagamento parcelado dos alugueres que ficaram suspensos.

Em verdade, o art. 10 estabelece o seguinte mecanismo técnico-jurídico: atribui ao locatário um direito potestativo (rectius, poder formativo modificativo da relação jurídica locatícia), a ser exercido por meio de simples comunicação motivada à contraparte, que permite ao inquilino ir até a esfera jurídica do locador e lá bloquear a inflamação do crédito aos alugueres em pretensão (isto é, permite ao locatário bloquear a passagem do direito de crédito do locador à pretensão), pelo prazo que especifica. Embora esse poder jurídico possa funcionar como uma exceção de direito material em alguns casos (quando a pretensão já foi exercida em face do inquilino), não parece que constitua essencialmente uma exceção, porque o mecanismo não é puramente defensivo, e porque não se limita a possibilitar a paralisação da pretensão já exercida, mas permite, como a regra, o bloqueio ao próprio exercício desta.

Toda essa sistemática estabelecida no art. 10 se mostra bastante oportuna e razoável, partindo-se da premissa de que o ordenamento jurídico toma a parte locatária, no contrato de locação de imóvel urbano para fins residenciais, como vulnerável, estabelecendo já normalmente uma série de medidas em seu espeial benefício. Há que se lembrar, contudo, que essa consideração de desequilíbrio da relação em desfavor do locatário não é feita da mesma forma intensa com que o sistema considera, por exemplo, o desequilíbrio na relação jurídica consumerista — na qual há uma presunção (absoluta) de vulnerabilidade do consumidor, nos termos expressos no art. 4º, inciso I, da Lei n.º 8.078/1990. Embora a moradia do inquilino nos contratos em questão seja aspecto que justifica que lhe seja deferida toda a proteção devida, não se pode olvidar que há muitos locadores igualmente dependentes do contrato para o seu sustento, locadores que dependem da renda auferida com a locação para sua própria subsistência. Tais situações poderiam ser levadas em conta na previsão normativa, estabelecendo-se a obrigatoriedade de prévia tentativa de solução consensual, negociada7, entre as partes, acerca de eventuais abatimentos no valor dos alugueres, parcelamentos ou suspensões de pagamento, ficando a norma da moratória do art. 10 como uma regra legal supletiva, um piso mínimo de proteção ao locatário (e também ao locador) caso uma solução negociada diversa não seja estipulada pelas partes, no atendimento dos seus melhores interesses e necessidades no caso concreto.

Igualmente, deve ser levada em consideração a situação dos inquilinos que são trabalhadores informais — os quais correspondem, por sinal, a um dos setores da população mais intensamente atingidos pelas graves consequências do atual cenário da pandemia e das medidas preventivas de isolamento social a ela atreladas. Há que se ter maior flexibilidade na exigência de comprovação documental dos requisitos do caput do art. 10 atinentes à redução de remuneração dos inquilinos trabalhadores informais, para que possam se beneficiar da suspensão de pagamento dos alugueres. Aqui, novamente, se está diante de aspecto que pode ser contemplado na redação final do Projeto de Lei n. 1179, a ser levado à votação no Senado Federal.

Em conclusão, cumpre ressaltar que tanto o art. 9º como o art. 10 do projeto de lei em comento veiculam regras jurídicas transitórias de suma importância para que o povo brasileiro possa atravessar um período delicado de sua história, seja do ponto de vista da saúde pública, seja do ponto de vista da estabilidade econômica. Eventuais melhorias e aprimoramentos – como aqueles indicados no decorrer desta exposição – podem ser efetuados sobre o texto com facilidade, ou mesmo por meio de possível regulamentação posterior dos dispositivos. Roga-se aos insignes senadores da República que, percebendo a importância singular do projeto para o momento, aprovem-no urgentemente, com a manutenção dos dois artigos examinados, com as modificações que sejam cabíveis para o melhor atendimento do interesse público.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA,UFRJ e UFAM).


Referências

1 Incluído no Código Civil pela Lei nº 13.465/2017.
2 Trata-se da Lei nº 13.874/2019.
3 Lei nº 13.146/2015. Aqui, cabe esclarecer: trata-se de lei louvável no que tange aos aspectos de Direito Público e de promoção de inclusão da pessoa com deficiência; já no que toca o Direito Civil, algumas de suas intervenções (em especial sobre o quadro das incapacidades da Parte Geral do Código Civil) são extremamente criticáveis.
4 Um projeto que se lembra de distinguir as figuras extintivas da resilição e da resolução contratual, como o PL 1179/2020 faz no título do seu Capítulo IV, já é, só por esse fato, merecedor de elevados encômios. Sobre o assunto, cf. F. C. Pontes de Miranda. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1959, pp. 208, 283 e 310 e ss. (em especial, pp. 375-380).
5 Revisão judicial dos contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006.
6 Cf. Notícias disponíveis em https://www.oantagonista.com/brasil/anastasia-anuncia-retirada-da-suspensao-de-pagamento-de-alugueis-do-regime-juridico-emergencial/?desk e  https://braziljournal.com/alugueis-pl-que-adia-pagamentos-vai-mudar
7 Não se trata aqui de providência de conciliação ou mediação extrajudicial ou judicial, mas sim, meramente, de uma previsão normativa que referisse a necessidade prévia de negociação entre locador e locatário sobre a readequação dos termos do contrato para o período da pandemia. Isso se o locatário desencadear o mecanismo, efetivamente comunicando ao locador as suas dificuldades financeiras e a necessidade de readequação contratual transitória.


*Procurador-regional substituto do Incra em São Paulo. Professor de Direito Civil no Curso de Pós-Graduação do Instituto de Direito Público (IDP) e na Universidade Paulista. Associado da ADFAS.

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