CNJ – ADFAS :: Associação de Direito de Família e das Sucessões https://adfas.org.br Associação de Direito de Família e das Sucessões Wed, 08 Mar 2017 17:55:18 +0000 pt-BR hourly 1 https://adfas.org.br/wp-content/uploads/2017/06/cropped-cropped-download.png CNJ – ADFAS :: Associação de Direito de Família e das Sucessões https://adfas.org.br 32 32 Regulamentação protetiva na reprodução assistida: Brasil à frente https://adfas.org.br/regulamentacao-protetiva-na-reproducao-assistida-brasil-a-frente/ Wed, 08 Mar 2017 17:55:18 +0000 https://adfas.org.br/?p=399 Nesta semana volto ao tema da reprodução assistida.
Ilustrando meu ponto de vista com mais um infeliz caso concreto, pretendo mostrar que ao contrário do que se tem lido e escutado sobre o assunto, a reprodução assistida não é um procedimento médico banal como outro qualquer. Ao contrário, é algo que deve ser sempre muito bem pensado por casais, clínicas e médicos, além de reguladores e legisladores de todos os países, uma vez que possui efeitos de grande repercussão na vida das pessoas envolvidas e não está imune a certos riscos de dar errado, muitas vezes de maneira dramática, como sucedeu no caso que exponho a seguir.
Um casal de Las Palmas, na Espanha, resolveu ter um filho. Como o homem já realizara uma vasectomia, a única alternativa seria recorrer aos métodos de reprodução assistida, que, no caso deles, seria do tipo homólogo, aquela em que a inseminação é feita por via artificial, mas a partir dos gametas do próprio casal.
As chances de que a inseminação fosse bem-sucedida, tal como lhes explicou o médico da clínica procurada para o procedimento, eram extremamente reduzidas. Em razão da vasectomia, o sêmen do homem, que teria de ser extraído por uma biópsia testicular, possuía um potencial fertilizador muito pequeno.
Entretanto, para grande surpresa do casal, e ainda maior dos médicos que conduziram a fertilização, quatro dos cinco óvulos extraídos da mulher foram fecundados. Um aproveitamento incrível de 80%, raro até mesmo quando as condições de fertilização são mais favoráveis.
Implantado no útero da mulher, o óvulo fecundado resultou em gravidez de gêmeos. Mas a notícia, em vez de ser a alegria do casal, terminou por destruir seu relacionamento.
Após o parto, o marido tomou conhecimento que o fator RH do sangue das crianças era negativo, enquanto o seu e da esposa eram positivos. Embora não seja impossível que pais de RH positivo gerem uma criança de RH negativo, as chances disso ocorrer são relativamente pequenas, o que despertou no marido as primeiras suspeitas.
Depois de anos turbulentos no casamento, o casal decidiu se divorciar. E o marido declarou, para o completo choque de sua agora ex-esposa, que não reconhecia os filhos. Alguns anos antes, em segredo e depois de muitas suspeitas que o perturbavam a ponto de fazê-lo até alucinar, o homem havia realizado um teste de DNA cujo resultado fora negativo. Ele não era o pai daquelas crianças e, por isso, decidira não mais reconhecê-las como seus filhos.
A explicação mais óbvia e imediata para aquele teste de DNA negativo seria o adultério no que acreditava o marido e todos os mais que do fato tomavam conhecimento.
Mas com a consciência tranquila de sua própria idoneidade e de que jamais fora infiel ao marido, a mulher estava convicta de que a única explicação possível a todo aquele pesadelo era ter a clínica de fertilização cometido um erro desastroso no procedimento de fertilização e trocado o sêmen do marido pelo de outro doador.
Foi isso mesmo o que concluiu o Supremo Tribunal da Espanha. Ao julgar a ação que pretendia o reconhecimento e a responsabilização da clínica pela confusão cometida no processo de reprodução assistida, além de indenização por danos morais, a justiça espanhola afastou as alegações de adultério feitas desta vez pela defesa da clínica e condenou a clínica pagar o equivalente a 2 milhões de reais em indenização à mulher, a título de reparação dos danos morais por ela sofridos.
Esse processo desastrado de reprodução assistida destruiu um casamento, desestabilizou emocionalmente o homem e a mulher que procuraram a clínica de reprodução assistida e feriu irreparavelmente a honra da mulher, mas, com toda certeza, os maiores prejudicados e ofendidos em seus direitos foram os filhos gerados no processo.
Uma vez que não era realmente seu o sêmen utilizado na inseminação, o ex-marido não poderia ser, contra sua própria vontade, considerado o pai das crianças pela lei espanhola, que tampouco reconhece vínculo jurídico entre o verdadeiro doador e as crianças geradas a partir de seus gametas.
Logo, pela razão mais angustiante possível, as crianças simplesmente não têm pai. E, aos olhos da lei espanhola, jamais o tiveram.
Embora a Constituição Espanhola, em seu artigo 39, em teoria lhes confira o direito constitucional à assistência paterna, os dois irmãos, crianças de apenas nove anos, acabaram excluídos concretamente desta garantia fundamental. Note-se que sequer podem compartilhar da proteção conferida pelo ordenamento espanhol aos órfãos, porque estes um dia já tiveram pais, ou das garantias atribuídas às pessoas que apenas não conhecem a identidade de seus pais. O horrível drama dos filhos desse procedimento, que já foram informados pela mãe de sua situação, é algo que mal podemos imaginar.
Como antecipei, essa história ilustra de forma triste, mas contundente, que, apesar de ser constantemente divulgada como um procedimento inocente, descomplicado e absolutamente seguro, a reprodução assistida é um processo complexo, que deve ser muito bem pensado e que, ao contrário do que se diz, possui sim os seus riscos. E não me refiro apenas aos riscos médicos, mas aos riscos sentimentais, morais e até mesmo existenciais, e que não afetam apenas o casal que opta pela inseminação artificial, mas também, e principalmente, as crianças concebidas nesta técnica.
Infelizmente, o que vemos nos dias de hoje na maior parte do mundo é que, quando o assunto é reprodução assistida, essas crianças que virão ao mundo são, quando muito, preocupação secundária de casais, clínicas, e até mesmo dos legisladores. A única coisa que importa são os tais dos “direitos reprodutivos” do casal e as cifras movimentadas pela inseminação artificial, a que interesses materiais pretendem transformar em negócio mercantil como outro qualquer.
Nesse contexto, O Conselho Nacional de Justiça, sob liderança da Ministra Nancy Andrighi, no Provimento nº 52, merece mais uma vez o nosso reconhecimento e admiração por ter remado contra a corrente e protegido os seres humanos gerados por reprodução assistida ao instituir a biparentalidade como requisito indispensável ao procedimento, ao vedar o anonimato dos doadores, e ao exigir que os dados de cada doador, cada doação e cada gravidez resultante de inseminação artificial sejam levados ao Registro Público, em acolhimento da manifestação da ADFAS nesse sentido.
O CNJ merece nosso reconhecimento por ter dado prioridade ao que efetivamente deve ser entendido como prioritário: os direitos fundamentais dos seres humanos concebidos em reprodução assistida.
*Regina Beatriz Tavares da Silva é Presidente da ADFAS (Associação de Direito de Família e das Sucessões). Doutora em Direito pela USP e advogada.

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Regulamentação protetiva do ser humano gerado por reprodução assistida https://adfas.org.br/regulamentacao-protetiva-do-ser-humano-gerado-por-reproducao-assistida/ Thu, 23 Feb 2017 18:05:14 +0000 https://adfas.org.br/?p=401 No artigo desta semana voltarei ao tema da reprodução assistida e aos avanços do Direito brasileiro na sua regulamentação, sendo o Brasil um dos três países do mundo que adotaram esta regulamentação protetiva.
Para que se perceba a importância do Direito brasileiro nessa matéria, contarei o caso da advogada francesa Audrey Kermalvezen, de sua luta para descobrir a própria origem e de como sua triste história serve à demonstração do acerto do CNJ brasileiro, sob a presidência da Ministra Nancy Andrighi, na sua regulamentação, que adotou as sugestões da ADFAS (Associação de Direito de Família e das Sucessões), realizadas em manifestação por mim elaborada em pedido de providências que tramitou nesse órgão.
Em uma tarde de 2009, os pais de Audrey revelaram à filha, já então com vinte e nove anos de idade e casada, que ela fora concebida por reprodução assistida heteróloga, aquela que um casal realiza mediante doação de gameta de um terceiro – no caso de Audrey, o espermatozoide de outro homem.
O irmão de Audrey, que, como lhe revelaram os pais naquela mesma tarde, fora gerado pelo mesmo procedimento de inseminação artificial, sentiu-se aliviado ao descobrir sua verdadeira origem, porque, segundo ele, sempre desconfiara haver algo de diferente entre ele e a sua família.
Audrey, ao contrário, sentiu o mundo abrir aos seus pés. Ela conta que foi tomada de uma raiva intensa contra os pais, por terem escondido a verdade dela por quase trinta anos. A raiva e a indignação que a moça sentia pelos pais só foi atenuada porque, como advogada especialista em Bioética, ela sabia perfeitamente o quanto a medicina e a legislação francesa haviam contribuído para criar e manter aquela mentira na qual ela havia acreditado durante tanto tempo, ao privilegiar o completo sigilo dos procedimentos de reproduções assistidas, mantendo inclusive o anonimato absoluto dos doares, com o propósito de encorajar mais e mais pessoas a se tornarem doadoras de gametas.
A angústia que se abateu sobre Audrey não se devia exclusivamente à frustração de descobrir que o homem que passara a vida inteira pensando ser seu pai, não era de fato seu pai biológico. Sua situação era mais grave.
Audrey casara-se com um homem da mesma idade, nascido na mesma região da França, também concebido por inseminação artificial. Sem poderem conhecer as identidades de seus pais biológicos, protegidas pelo absoluto anonimato que lhes confere a Lei francesa, ela e o marido foram tomados pelo medo de que aqueles fossem, na verdade, um único e mesmo homem, o que os tornaria biologicamente meios-irmãos.
A chance de Audrey e seu marido serem irmãos era suficiente para afligi-los.
O casal resolveu então iniciar na justiça uma verdadeira batalha, que agora já se estende por anos, para descobrir a identidade de seus respectivos pais biológicos. Ou, ao menos, para obterem a confirmação que não são filhos biológicos do mesmo homem. Mas essa informação lhes tem sido dolorosamente negada, porque, argumentam as autoridades francesas, colocaria em risco o anonimato dos doadores, tamanha é a força que a confidencialidade dos doadores de gametas tem no Direito Francês e o desdém pelos direitos de personalidade dos nascidos em fertilização assistida.
No Brasil, por outro lado, Audrey teria melhor sorte e encontraria a devida tutela para a sua justa pretensão de conhecer a identidade de seu pai biológico, de conhecer a própria origem, o que configura um verdadeiro direito da personalidade: o direito à memória familiar e ao conhecimento da origem genética.
Isto porque desde março de 2016, com o Provimento nº 52, da Corregedoria Nacional de Justiça – CNJ, o anonimato do doador de gametas está vedado no Brasil.
Sob as penas da lei, toda doação de óvulos ou espermatozoides deve ser obrigatoriamente registrada em Cartório de Tabelionato de Notas, por meio de escritura pública e os dados do genitor biológico devem constar no Cartório de Registro Civil junto à certidão do nascimento da criança fruto de reprodução assistida.
Muito embora esse provimento do CNJ aplique-se na sua totalidade, com medidas obrigatórias e prévias ao registro de nascimento de uma criança nascida de reprodução assistida, somente após a sua aprovação, claro está que nas reproduções assistidas anteriormente realizadas passou a caber aos filhos oriundos dessas técnicas o direito de buscarem no Poder Judiciário o conhecimento de sua ascendência biológica.
Com a proibição ao anonimato dos doadores, concretiza-se, assim, o princípio da igualdade nas relações familiares, pois agora conhecer a própria origem, saber quem é e de onde veio, não é mais privilégio exclusivo dos brasileiros concebidos por meio natural, direito este que já era reconhecido até mesmo ao filho adotivo desde 2008, mas sim um verdadeiro direito à memória familiar, garantido a todos os brasileiros, sem quaisquer discriminações, o conhecimento de sua ascendência biológica.
O CNJ, com admirável sensibilidade e lucidez, elevou os direitos dos brasileiros concebidos em reprodução assistida, acima dos interesses corporativistas daqueles que, amparados na opinião irresponsável e favorável ao sigilo do doador, pretendem transformar a reprodução humana em comércio lucrativo, ou seja, em mercado reprodutivo.
A história da francesa Audrey Kermalvezen é um lastimável testemunho dos danos existenciais irreparáveis que um regramento irresponsável e uma prática leviana das técnicas de reprodução assistida podem causar nos seres humanos concebidos artificialmente.
Note-se, por fim, que ao lado do Brasil, somente o Japão e a Noruega seguem a mesma linha de proteção ao ser humano gerado por reprodução assistida. Os demais países continuam a manter a regra do anonimato do doador.
Que sua angústia irremediável nos sirva ao menos de lição sobre o que acontece todas as vezes em que interesses sórdidos e egoístas se sobrepõem ao valor da vida humana e à proteção dos direitos fundamentais e da personalidade.
*Regina Beatriz Tavares da Silva é Presidente da ADFAS (Associação de Direito de Família e das Sucessões). Doutora em Direito pela USP e advogada.

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