Associação de Direito de Família e das Sucessões

DRA REGINA BEATRIZ CONCEDE ENTREVISTA A GAZETA DO POVO SOBRE O PODER DE VACINAÇÃO DOS PAIS

A vacinação infantil contra a Covid-19 no Brasil deverá começar na próxima sexta-feira (14). Desde que a possibilidade de vacinar crianças começou a ser discutida no País – e especialmente depois que ela foi aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em 16 de dezembro –, a polêmica sobre o grau de autonomia dos pais na decisão de vacinar ou não seus filhos contra a Covid assumiu destaque no debate público brasileiro.
Nas últimas semanas, vários eventos relacionados ao tema causaram controvérsia: no fim de dezembro, a recomendação do Ministério da Saúde favorável à vacinação infantil, mas com exigência de prescrição médica; dias depois, o recuo da pasta dessa exigência; no começo de janeiro, a consulta pública e a audiência sobre o tema; e, no dia 5 de janeiro, a divulgação do cronograma para a vacinação infantil.
Em meio a tudo isso, diversas questões surgiram: os pais podem ser obrigados, em algum contexto, a vacinarem seus filhos? As escolas podem fazer essa exigência? As famílias podem sofrer algum tipo de sanção por parte das autoridades ao se negarem a vacinar suas crianças?
Quais são as leis que importam na discussão sobre a vacinação infantil
Regina Beatriz Tavares da Silva, advogada, presidente da ADFAS (Associação de Direito de Família e das Sucessões) e pós-doutora em direito da bioética, diz que não há, hoje, nenhuma norma que obrigue que os pais vacinem seus filhos. “É uma decisão dos pais, sem dúvida nenhuma. O que os pais têm de fazer é refletir bem em torno da retomada dos estudos presenciais e das pesquisas técnicas que estão aí disponíveis. É uma reflexão muito voltada ao pai e à mãe, que são os responsáveis diretos pela saúde dos filhos. Cada pai, cada mãe, vai procurar definir aquilo que considera melhor”, diz ela.
Ainda que, essencialmente, a decisão caiba aos pais, há diversas circunstâncias que podem tornar o tema complexo, como a volta às aulas e a exigência da vacinação por parte de instituições de ensino. Para esclarecer essas questões, há algumas leis que precisam ser levadas em conta.
A Constituição trata do tema somente em linhas gerais, ao definir, em seu artigo 229º, que “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores” e, em seu artigo 5º, estabelecer os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos – entre os quais estão, por exemplo, a liberdade de consciência e a inviolabilidade da vida privada.
A lei que trata mais especificamente sobre a autoridade dos pais em relação aos filhos é o Código Civil, em seu capítulo sobre o “poder familiar”. Regina Beatriz explica que o poder familiar diz respeito à responsabilidade dos pais de “dirigir a criação dos filhos menores de 18 anos, o que envolve também tratamentos, vacinações e tudo o que for necessário para a formação do filho”. “É muito mais um dever do que um direito. É um feixe de obrigações a cargo dos pais. Não é um poder ilimitado”, explica. “A limitação desse poder é o superior interesse do filho menor”, complementa.
Em seu artigo 1.637, o Código Civil afirma que, se os pais abusarem de sua autoridade, “faltando aos deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos”, a Justiça ou o Ministério Público podem “adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha”.
Já o artigo 14 do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) diz que “é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”.
Hipótese de sancionar pais por não vacinarem seus filhos é consequência de “endeusamento do Estado”, diz especialista
O Código Civil e especialmente o artigo 14 do ECA têm sido usados por alguns formadores de opinião para dizer que a vacinação já seria obrigatória no Brasil, uma vez que o Ministério da Saúde recomendou a vacinação de crianças de entre 5 e 11 anos. Alguns deles chegam a defender sanções para os pais. No entanto, em sua própria recomendação favorável à vacina, a pasta tornou expresso que a vacinação não é obrigatória , o que invalida de vez esse raciocínio.
Somente se uma lei tornasse obrigatória a vacinação de crianças no Brasil é que o Estado poderia se fundamentar no Código Civil para aplicar sanções aos pais que não vacinassem seus filhos. Nessa hipótese, as sanções poderiam envolver desde pequenas multas até a própria suspensão do poder familiar.
André Gonçalves Fernandes, pós-doutor em Filosofia do Direito, Epistemologia e Antropologia Filosófica, considera que a hipótese de sancionar os pais por não aceitarem a aplicação de uma vacina experimental em seus filhos é absurda e só pode estar sendo discutida seriamente em um contexto social de “endeusamento do Estado”. “É tudo muito discutível num sentido e no outro, está tudo em aberto, não tem nada solidificado em termos científicos. Em segundo lugar, a pena pela suposta omissão paterna seria completamente desproporcional ao ato omissivo supostamente praticado”, diz.
Para o especialista, haveria, nessa hipótese, “supressão do princípio da subsidiariedade”. Além de levar em conta o bem comum, explica ele, é necessário respeitar “a primazia dos pais no sagrado direito de educação dos filhos”. “Toda tentativa do estado de suprimir isso dos pais foi frustrada”, ressalta. “O Estado só deve intervir quando as sociedades intermediárias – a família, por exemplo – são incapazes de fazê-lo.”
Escolas particulares podem exigir vacinação, mas questão pode ser judicializada
Especialistas consultados pela Gazeta do Povo afirmam que, nas escolas públicas, o tema da vacinação infantil deve ser tratado como em qualquer espaço público – isto é, os pais de estudantes dessas instituições têm total liberdade para definir se vacinarão ou não seus filhos.
Em escolas particulares, o assunto é mais complexo. Como qualquer empresa privada, elas têm o direito de impor certas restrições alegando o desejo de proteger a saúde daqueles que circulam em seus ambientes. Mas, dependendo do caso, a questão pode ser judicializada.
Gonçalves Fernandes explica que “a escola privada, nesse ponto, tem liberdade de definir quem ela vai matricular ou não, desde que não fira nenhum princípio constitucional do artigo 5º [que trata dos direitos e garantias fundamentais]”. No entanto, segundo ele, a escola precisa dar um tempo razoável aos pais “para fazer essa correção de rumo no meio da viagem” e matricular os filhos em outra instituição.
Se a escola não oferecer um tempo razoável, “isso poderia ser plenamente questionável pelos pais”, afirma ele. A solução, a partir daí, seria a judicialização do caso. “Os pais podem argumentar mostrando que não há evidências científicas de que a negativa da vacinação poderia provocar um efeito imediato no ambiente escolar”, diz.
Regina Beatriz concorda que a judicialização seria o único desfecho possível caso os pais e a escola não entrassem em um acordo, mas recorda que as crianças “podem estar sujeitas a perder os estudos”. Nesse caso, a ação deverá ser julgada em tutela de urgência, para minimizar o potencial prejuízo aos estudantes.
Fonte: Gazeta do Povo (11.01.2022)

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